Foto proteção da criança, com três macacos de pelúcia, um está segurando uma flor, outro está com a boca aberta e as mãos ao canto da boca, e o ultimo está com as mãos em volta dos olhos.

por Thaís Dantas/advogada do projeto Prioridade Absoluta

Como o projeto Prioridade Absoluta pode ajudar a combater a violação sexual de crianças na internet?

A violência sexual descumpre os direitos assegurados a crianças, em especial a garantia de dignidade sexual, sendo tipificadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) as condutas que implicam abuso e exploração[1], as duas principais modalidades de violência sexual.

Ainda assim, o abuso e a exploração sexual de crianças são violações extremamente recorrentes: a título de exemplo, somente no âmbito do apurado pela plataforma Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos[2], foram recebidas 4.480 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes no primeiro trimestre de 2015[3].

A prioridade absoluta da criança

Esse cenário, em que a violência sexual de crianças é uma infeliz constante, representa grave violação de direitos humanos e torna-se ainda mais inaceitável quando se tem em mente a garantia de prioridade absoluta atribuída a crianças, por força do artigo 227 da Constituição Federal, a qual prevê:

Art. 227, CF.É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Referido artigo coloca a criança na posição de sujeito de direitos e reconhece sua condição especial de desenvolvimento, que é justamente o que lhe assegura prioridade absoluta. Cabe ainda ressaltar que o uso da qualificação “absoluta”, presente somente neste artigo da Constituição, confere à norma uma necessidade de aplicação invariável e incondicionada em todos os casos em que os interesses da criança estiverem envolvidos, de forma que o seu melhor interesse deve ser atendido de forma absolutamente prioritária, ou seja, em primeiro lugar[4].

Vale ainda destacar que tal garantia justifica-se pela condição peculiar de desenvolvimento de crianças e sua consequente hipervulnerabilidade biopsíquica, dado que as violações de direitos sofridas durante a infância provocam graves danos e consequências para toda a vida do indivíduo. No caso da violência sexual, é sabido que esta tem consequências extremamente gravosas para o desenvolvimento da vítima.

A atuação do projeto Prioridade Absoluta

Pensando nisso, o projeto Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, oferece um passo a passo de como proteger crianças da violência sexual na internet, por entender que a dignidade sexual é um valor fundamental de modo que a liberdade, a privacidade e a intimidade no exercício da sexualidade deve ser assegurada a todos os indivíduos.

A preocupação com proteção da dignidade sexual de crianças no âmbito da internet se justifica pelo fato de que cada vez mais brasileiros usam a internet: segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia[5], atualmente, 48% dos brasileiros usam a internet, sendo que 37% dessas pessoas a utilizam todos os dias, cerca de 4h59 por dia.

Esse panorama também se verifica no caso de crianças, que cada vez têm um acesso mais precoce à rede: segundo a pesquisa TIC Kids Online[6], 37% das crianças que atualmente têm 9-10 anos declararam ter acessado a Internet pela primeira vez durante a fase da alfabetização, ou seja, por volta dos 6 e 7 anos. Esse acesso precoce à internet, em muitos casos, se reflete em certo despreparo e desconhecimento dos pequenos para lidar com alguns dos riscos que são potencializados na internet, como é o caso da violência sexual.

No âmbito da internet, três principais violações se destacam e serão brevemente explicadas abaixo, de modo a permitir sua identificação e combate: a revenge porn, a pornografia infantil e o aliciamento de crianças.

Veja também:
Carnaval sem trabalho infantil e sem violência sexual
Prefeituras e DF respondem sobre ações de combate às violações dos direitos das crianças no Carnaval
Alana na 10ª Conferência Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente

Revenge Porn

A revenge porn ou pornografia de vingança ocorre quando fotos íntimas são enviadas a terceiros, geralmente por motivo de vingança ou represália, como no caso de término de um relacionamento, por exemplo. Assim, fotos ou vídeos íntimos, geralmente enviados por meio de mensagem instantânea, que antes eram mantidos no campo de proteção e confiança do relacionamento, são divulgados e com isso multiplicam-se desenfreadamente pela rede. Vale destacar que o sentimento de vingança é mera característica habitualmente observada, pois a distribuição de imagens ou vídeos contendo imagens de crianças ou adolescentes é sempre ilícita.

Assim, condutas como essas implicam violação aos direitos de imagem, honra e privacidade. A divulgação clandestina de cenas íntimas implica em violação ao direito de imagem, previsto no artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que garante às crianças o direito ao respeito, o que engloba a proteção à imagem. Há ainda violação aos artigos 20 e 21 do Código Civil, que protegem o direito de imagem de todos. Do ponto de vista criminal, a atitude pode configurar uma série de infrações, variando desde a injúria, tipificada pelo artigo 140 do Código Penal, que consiste em ofensa à honra subjetiva decorrente da divulgação do conteúdo, até a possível prática de delitos tipificados pelos artigos 241-A ou 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nesses casos, a primeira medida a ser tomada é a devida notificação do provedor, para que retire o conteúdo do ar e identifique os responsáveis. A partir disso, é possível responsabilizar o agente, civil e criminalmente, casos em que pode se recorrer a um advogado particular, à Defensoria Pública ou ao Ministério Público. Podem ser complementarmente acionados o Disque 100 e o Conselho Tutelar.

Pornografia infantil

A pornografia infantil, assim como outras condutas de abuso sexual de crianças, configura crime, sendo a tipificação uma forma de tutelar a integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente.

Os artigos 240 a 241-C do Estatuto da Criança e Adolescente criminalizam diversas condutas de modo a abarcar toda a rede que favorece o cometimento e a manutenção de crimes associados à pedofilia, sendo esta um desvio que leva um indivíduo adulto a se sentir atraído sexualmente por crianças.

Nesse contexto, conforme previsão do ECA, são criminosos os atos de produzir; reproduzir; dirigir; fotografar; filmar; registrar por qualquer meio cenas de sexo explícito ou pornográficas. Ainda, o mesmo diploma traz outras condutas criminosas relacionadas à pornografia infantil, tais como: vender; expor à venda fotografia ou vídeo ou outro registro que contenha cenas de sexo explícito ou pornográficas; oferecer; trocar; disponibilizar; transmitir; distribuir; publicar; divulgar; adquirir; possuir; armazenar, por qualquer meio, conteúdo de pornografia infantil; simular a participação de menor em cena pornográfica por meio de adulteração, montagem, ou modificação de fotografia, vídeo, etc.

Nesses casos, é importante buscar junto ao provedor a identidade do responsável e retirar o conteúdo do ar. Ainda, deve-se proceder com a notícia crime à polícia investigativa ou ao Ministério Público, que deverá oferecer a denúncia. Podem ser complementarmente acionados o Disque 100 e o Conselho Tutelar.

Aliciamento de menores

Em linhas gerais, aliciar significa atrair a criança para a zona de intimidade do agressor: é ganhar a confiança, estabelecer uma relação de conforto entre ambos para, posteriormente, estimular a sexualidade precoce e explorar, sexual e financeiramente, essa criança.

O aliciamento de crianças é também tipificado como crime pelo artigo 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente, e abarca as condutas de aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com fim de com ela praticar ato libidinoso, sendo a internet frequentemente utilizada como meio para consecução desse tipo de crime.

Nesses casos, é importante questionar ao provedor do serviço utilizado para o aliciamento a identidade do responsável. Em seguida, é possível proceder com a notícia crime à Polícia Civil ou ao Ministério Público, que deverá oferecer a denúncia. Podem ser complementarmente acionados o Disque 100 e o Conselho Tutelar.

Conclusões

Por estarem em processo de desenvolvimento e amadurecimento sexual, qualquer tipo de violação à dignidade sexual durante a infância torna-se ainda mais grave tende a reverberar por toda a vida desse indivíduo.

É preciso sempre ter em mente que crianças são prioridade absoluta e devem ter seus direitos garantidos em primeiro lugar.  Assim, a violência sexual contra crianças – seja nas ruas ou na internet – não pode, de maneira alguma, ser naturalizada ou ignorada, sendo fundamental que o Estado, a família e a sociedade como um todo somem esforços para a garantia dos direitos da infância e o combate à violência sexual de crianças.

Foto: Divulgação/ Governo Federal

[1] O abuso sexual corresponde à utilização de criança ou adolescente para satisfação de desejos sexuais do abusador, enquanto a exploração sexual é a utilização de criança ou adolescente com fins comerciais e de lucro.  Em Violência Sexual contra crianças e adolescentes: identificação e enfrentamento (MPDFT, 2015). Disponível em:

<http://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/imprensa/cartilhas/cartilha_violencia_contra_criancas_adolescentes_web.pdf>. Acesso em 20 jan. 2016.

[2] O ‘Disque 100’, também conhecido como ‘Disque Direitos Humanos’, é um serviço de atendimento telefônico gratuito, que funciona 24 horas por dia, nos sete dias da semana. As denúncias recebidas na Ouvidoria e no Disque 100 são analisadas, tratadas e encaminhadas aos órgãos responsáveis. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/disque-direitos-humanos/disque-direitos-humanos>. Acesso em 20 jan. 2016.

[3] Disque 100: Quatro mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes foram registradas no primeiro trimestre de 2015. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/noticias/2015/maio/disque-100-quatro-mil-denuncias-de-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-foram-registradas-no-primeiro-trimestre-de-2015>. Acesso em 20 jan. 2016.

[4] “Por absoluta prioridade, devemos entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro devem ser atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes […]. Por absoluta prioridade, entende-se que, na área administrativa, enquanto não existem creches, escolas, postos de saúde, atendimento preventivo e emergencial a gestantes, dignas moradias e trabalho, não se deveria asfaltar ruas, construir praças, sambódromos, monumentos artísticos etc., porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de doenças são mais importantes que as obras de concreto que ficam para demonstrar o poder do governante” Em O Estatuto da Criança e do Adolescente: comentários (LIBERATI, 1991).

[5] SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Pesquisa brasileira de mídia 2015: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Disponível em: <http://www.secom.gov.br/atuacao/pesquisa/lista-de-pesquisas-quantitativas-e-qualitativas-de-contratos-atuais/pesquisa-brasileira-de-midia-pbm-2015.pdf>. Acesso em: 08 jan. 2016.

[6] COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL – CGI.br. Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil – TIC Kids Online Brasil 2014. Coord. Alexandre F. Barbosa. São Paulo: CGI. br, 2014. Disponível em: <http://www.cetic.br/media/docs/publicacoes/2/TIC_Kids_2014_livro_eletronico.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2016.

COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL – CGI.br. Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil – TIC Kids Online Brasil 2014. Coord. Alexandre F. Barbosa. São Paulo: CGI. br, 2014. Disponível em: <http://www.cetic.br/media/docs/publicacoes/2/TIC_Kids_2014_livro_eletronico.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2016.