Foto de uma garota segundo um pássaro em uma praça

por Guilherme Perisse*

A mobilização da sociedade civil levou à assembleia constituinte de 1987 duas propostas de iniciativa popular – “Criança e Constituinte” e “Criança: Prioridade Nacional” – que deram origem ao texto do artigo 227 da Constituição Federal, marco normativo que culminou na aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente

Uma conquista da sociedade brasileira, a prioridade absoluta é um marco da mudança das lentes utilizadas pela legislação brasileira para enxergar a infância. É a partir desse marco que se passou a olhar para a criança como pessoa em especial condição de desenvolvimento, digna de receber proteção integral e de ter garantido seu melhor interesse.

A mudança só ocorreu por mobilização da sociedade civil que levou à assembleia constituinte de 1987 duas propostas de iniciativa popular – “Criança e Constituinte” e “Criança: Prioridade Nacional” – que deram origem ao texto do artigo 227 da Constituição Federal1, marco normativo que culminou na aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Da mesma forma como a prioridade absoluta consta do texto constitucional porque a sociedade se organizou e pleiteou essa transformação, é pela ação da sociedade, por seus diversos atores, que a prioridade absoluta vem ganhando maior relevância com o passar do tempo.

Estado, família e sociedade:

Redigido de forma compatível com as peculiaridades da infância, o artigo 227 da Constituição Federal é bastante abrangente e impõe ao Estado, à sociedade e a família o dever de assegurar, às crianças, com prioridade absoluta “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Não poderia ser diferente, uma vez que a peculiar condição de desenvolvimento da criança impõe a necessidade de coordenação dos diferentes atores para garantia plena dos direitos das crianças. Em diversos casos, como é o caso do direito de receber o aleitamento materno, apenas a mãe (família) é capaz de garantir este direito, no entanto, sem uma tutela estatal que garanta à mãe licença maternidade remunerada, a garantia deste direito estaria prejudicada. O mesmo ocorre em casos de extrema vulnerabilidade social, em que o apoio do Estado e da sociedade pode ser necessário para que a família tenha condição de garantir a convivência familiar saudável, essencial ao desenvolvimento da  criança.

Na prática:

A prioridade absoluta é muito ampla, de modo que para facilitar sua aplicabilidade o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente regulamenta a norma para deixar claras algumas consequências desta previsão, mais ligadas à ação estatal, que são:

– a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

– a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

– a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas, e;

– a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Assim, do ponto de vista legal, enquanto não existirem creches, escolas, postos de saúde, leitos hospitalares capazes de atender satisfatoriamente a todas as crianças, não se deveria realizar nenhum investimento em ações como a construção de estádios, sambódromos, monumentos etc.

Em complemento, todos os serviços públicos devem ser organizados de modo a assegurar que os serviços destinados à garantia dos direitos das crianças tenham atendimento prioritário e toda a política pública deve ser formulada levando em conta a garantia dos direitos das crianças correlatos ao que se estiver realizando.

No entanto, apesar da excelência da norma, não se verifica, concretamente, o cumprimento da prioridade absoluta, ao menos é essa a percepção da sociedade medida em pesquisa realizada, em 2013, pelo instituto Datafolha. Na pesquisa verificou-se que 94% da população é favorável à aplicação da norma, mas apenas 19% da população se considera informada sobre o direito da criança.

Deste modo, o desafio posto à sociedade, ao Estado e às famílias é o de efetivar esta norma vigente há 27 anos, o que levará, por consequência, à garantia de uma série de outros direitos da criança, que apesar de serem garantidos pela legislação, ainda precisam ser devidamente aplicados. Para tanto, é essencial que o direito da criança, bem como suas características e peculiaridades sejam do conhecimento de toda a sociedade, que deve cobrar do poder público as ações proteção, promoção e defesa dos direitos das crianças, com prioridade absoluta.

*Guilherme Perisse é  Advogado do Instituto Alana. O texto foi publicado originalmente no Le Monde Diplomatique.

1 Kaminski, André. Conselho Tutelar no Estatuto da Criança e do Adolescente. Porto Alegre: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, 2010. Disponível em http://www.mprs.mp.br/areas/infancia/arquivos/ctnoeca.pdf, acesso em 4 de agosto de 2014.

Foto: Via Flickr