Mais de 18 mil adolescentes estão em privação de liberdade por tempo indeterminado no Brasil, de acordo com dados do Conselho Nacional do Ministério Público. A privação de liberdade – que já gera situação de vulnerabilidade, especialmente para pessoas em desenvolvimento – somada ao cenário atual de coronavírus, pode causar impactos desastrosos não só para adolescentes, mas para profissionais que atuam no sistema socioeducativo, educadores, familiares e para toda a sociedade.
Para conversar sobre essas questões e pensar sobre os impactos que a pandemia pode trazer para a socioeducação, a segurança e a saúde pública no país, aconteceu, na última quarta-feira (17/6), o Expresso 227: Impactos da pandemia no sistema socioeducativo. Exibida no canal do Instituto Alana no Youtube, essa série de debates ao vivo tem o objetivo de dar visibilidade às discussões relacionadas aos direitos da criança, por meio da participação de convidados especialistas nos temas.
Participaram da conversa Dillyane Ribeiro, coordenadora do Núcleo de Monitoramento do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca Ceará); Rodrigo Azambuja Martins, coordenador da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro; e Ana Paula Freitas coordenadora adjunta do Departamento de Infância do IBCCRIM. A mediação foi feita por Mayara Silva de Souza, advogada do programa Prioridade Absoluta.
Os especialistas falaram sobre como tem sido realizada a aplicação das medidas socioeducativas em meio aberto em seus respectivos estados durante a pandemia. Em São Paulo, Freitas explicou que, nos casos em que trabalha, as medidas foram suspensas para não colocar o adolescente em risco; no Ceará, Ribeiro pontuou que houve um esforço do poder Judiciário e do poder Executivo para cumprir as recomendações e 150 adolescentes saíram da privação de liberdade; já no Rio de Janeiro, Azambuja explicou que as decisões quanto às medidas do meio aberto, que são a liberdade assistida e a prestação de serviço à comunidade, variam de cidade para cidade, porém um problema que se mantém no estado é a insuficiência do número de CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), que são as unidades que executam as medidas em meio aberto.
Também foram abordadas questões sobre a manutenção dos direitos à educação, saúde e convivência familiar no sistema socioeducativo durante a pandemia, além dos principais desafios em relação a articulação em rede para o fortalecimento das medidas em meio aberto, e sobre o uso de equipamentos de proteção individual pelos funcionários e adolescentes.
Entregamos aos especialistas as perguntas feitas pelo público que não foram respondidas durante o programa, em razão do tempo. Confira abaixo as respostas:
1. Gostaríamos de saber mais sobre os planos de ação que estão sendo tomados.
Dillyane Ribeiro: A Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pontua a necessidade de que os órgãos elaborem planos de contingência. O que a gente tem percebido tanto pelo que a gente acompanha no Ceará, quanto no diálogo com Cedecas de outros estados, é que a maioria dos planos de contingência são vagos, não explicitam as rotinas e os protocolos que devem ser adotados. Por exemplo, no caso do Ceará, o plano de contingência se limita basicamente a descrever aspectos da pandemia, características do COVID-19 e elenca quais equipamentos de proteção devem ser utilizados. Mas ele não traz como devem ser utilizados, em que circunstâncias, quem deve utilizar. Então, existe pouca nitidez sobre as rotinas que devem ser adotadas, o que dificulta também a possibilidade de cobrança dessas rotinas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu uma orientação para os espaços de privação de liberdade em geral, mas é preciso que os estados avancem no detalhamento desses planos de contingência, desses protocolos.
Na prática, a Defensoria Pública do Ceará percebeu, nas visitas que realizou, uma ausência de equipamentos de proteção individual em número suficiente para os profissionais. Tem um equipamento diferenciado para os profissionais de saúde, mas para os profissionais em geral, o equipamento disponível é basicamente a máscara. Por isso, a gente tem insistido e feito a incidência quanto a necessidade de fornecimento de fardamento completo e que haja espaço e estrutura para que eles troquem de roupa, por exemplo. Também temos recebido muitas reclamações dos profissionais quanto a falta de transparência sobre colegas de trabalho contaminados pela doença; e quando os adolescentes precisam sair da unidade para a delegacia ou para exame de corpo de delito, nem os profissionais, nem os adolescentes tem ido com máscara. Então, a gente tem muito ainda o que avançar com essas medidas de prevenção ao contágio.
2. Qual a real estrutura médica dentro das unidades?
D.R: No Brasil nós contamos com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei (PNAISARI), especialmente aqueles que estão em regimes de internação e internação provisória. Essa portaria do Ministério da Saúde regulamenta o atendimento em saúde dos adolescentes, pontuando que a equipe de saúde das unidades deve se articular com a rede de atenção básica e para que haja uma equipe de referência para aquela unidade de internação. Então, mesmo que a unidade conte com a equipe de saúde, isso deve estar articulado com a rede local de atenção básica. Nós temos a informação que, neste momento, essa política está paralisada e isso é muito grave, em especial porque muitos municípios ainda não aderiram e o Ministério da Saúde informou que suspendeu novas adesões. Nesse contexto de pandemia isso é ainda mais grave.
3. Com relação à garantia de direito à saúde, nesse contexto da pandemia, não seria possível a Fundação CASA agendar o atendimento na Unidade Básica de Saúde (UBS)?
Ana Paula Freitas: A Fundação CASA pode utilizar-se da UBS, e faz quando os adolescentes apresentam casos de média e alta complexidade. Para questões “rotineiras” faz uso do sistema criado dentro da fundação, que atende os adolescentes quando reclamam de alguma dor, ou apresentam algum sintoma. Então em tempos de pandemia a Fundação CASA pode fazer uso da UBS, mas, considerando que recentemente prenderam um adolescente diagnosticado com COVID-19 em um banheiro, percebemos que não estão fazendo. E também precisamos ponderar que as UBSs não têm estrutura para atender casos de COVID-19.
4. Gostaria de saber se vocês conhecem exemplos de profissionais e/ou serviços que tem conseguido realizar o atendimento socioeducativo sem violar os direitos e ainda evitar o contágio.
D.R: Essa pergunta é muito difícil de responder porque se essas instituições já tinham uma rotina e um cotidiano muito impenetrável a atores externos, as medidas tomadas na pandemia agravaram a falta de acesso. Então, realmente fica difícil. E essa pergunta evidencia a demanda para que essas instituições se abram à sociedade e à comunidade, porque quanto mais pessoas envolvidas, mais garantias os adolescentes têm.
5. O trabalho em rede tem um impacto muito forte no acompanhamento das medidas socioeducativas. Quais os principais desafios que vocês apontam na articulação em rede para o fortalecimento das Medidas Socioeducativas em meio aberto (MSE)?
A.P.F: Acredito que o maior desafio seja a articulação com instituições para que os adolescentes cumpram as medidas, porque o Judiciário tem criado barreiras. Além disso, muitos adolescentes precisam se deslocar quilômetros para cumprir a medida, o que pode gerar violências sociais e, ainda, dependendo da realidade da família do adolescente, caso não consiga cumprir efetivamente essa medida, ele poderá ser internado na Fundação CASA, em uma medida chamada internação sanção, que aprisiona o adolescente pelo prazo máximo de 90 dias. Então tudo isso cria uma barreira para que a medida seja exercida de forma eficaz.
6. Como está a saída dos jovens quando já cumpriram as medidas nesse momento de pandemia?
Rodrigo Azambuja: Contextualizando, o jovem pode sair das unidades de internação por alguns motivos: porque o processo foi julgado improcedente e ele estava aguardando o julgamento preso; porque no julgamento foi aplicada uma medida socioeducativa diferente da internação; porque decorreu o prazo de 45 dias da internação provisória, que é improrrogável, e ele não foi julgado, aí ele vai aguardar esse julgamento em liberdade; ou pode sair nas reavaliações da medida de internação, que é quando ele já foi julgado e após um tempo são avaliadas as metas do plano individual de atendimento, as evoluções que ele demonstrou durante o período, e o juiz então decide se ele continua internado ou não.
As saídas têm sido feitas normalmente. Se ele já for maior de 18 anos, ele pode sair sozinho da unidade – têm meninos de 18, 19, 20 até 21 anos cumprindo ainda a medida de internação, essa é uma previsão expressa do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). E, caso familiares não sejam contactados ou tenham dificuldades para chegar até à cidade, encaminha-se esses adolescentes para entidades de acolhimento nos municípios de origem. Isso às vezes atrasa um pouco a saída porque organizar toda essa estrutura de transporte e viabilizar uma vaga no acolhimento é um pouco demorado. Mas o Ministério Público tem acompanhado de perto, os promotores da tutela coletiva conseguiram, no início da pandemia, estabelecer um fluxo de trabalho para cuidar dessa situação dos acolhimentos dos meninos que não são munícipes do Rio de Janeiro. A gente vive uma realidade de poucas unidades de internação, então meninos que moram em outras cidades vêm cumprir a medida aqui. E aí quando as medidas terminam eles têm que voltar pros seus municípios de origem.
7. Como a demora crônica do Sistema Judiciário do Brasil impacta a vida das crianças e adolescentes na pandemia?
A.P.F: Em regra, os processos na Justiça Juvenil levam 45 dias para sentenciar quando estão internados provisoriamente. Mas, quando estão respondendo o processo em liberdade, não há prazo, o que pode atacar diretamente o princípio da brevidade e excepcionalidade que rege, ou deveria reger, a Justiça Juvenil.
Em tempos de pandemia, essa realidade se torna ainda mais preocupante, pois muitos adolescentes foram liberados no início da pandemia sem o processo estar encerrado. Em São Paulo, os processos estão parados. O que nos preocupa é o futuro andamento destes processos, pois já estamos há três meses em quarentena, então muitos adolescentes estão em casa aguardando o retorno das audiências, e quando retornarem ainda podem ser sentenciados a medida socioeducativa de internação, o que vai violar o princípio da brevidade, da excepcionalidade, e a condição peculiar da pessoa em desenvolvimento. Então essa demora e a incerteza do que vai ocorrer pós pandemia, pode gerar grandes prejuízos na socioeducação do adolescente e a medida vai perder o caráter educacional, restará apenas o punitivismo.
8. Gostaria de saber a opinião dos participantes sobre a possibilidade de audiência dos adolescente por videoconferência? No Rio de Janeiro estão ocorrendo audiências por videoconferências, o que contraria dispositivo expresso no ECA.
R.A: Nós temos travado uma grande batalha judicial com relação a isso. Realmente elas não têm previsão legal. Pelo contrário, contrariam as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente que falam da necessidade da presença física do menino ou da menina no julgamento. Recentemente, as audiências não estão acontecendo nem por videoconferência propriamente dita, da forma prevista no Código de Processo Penal em que o adolescente fica na unidade de internação e as pessoas ficam reunidas na sala de audiência.
Agora, as audiências estão acontecendo totalmente virtuais, em uma espécie de teleaudiência: cada pessoa na sua casa, assistindo um ato por uma tela de computador. Isso aí não tem previsão legal nenhuma, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de maneira inconstitucional, ilegal, regulamentou a prática dessa forma. Nós fomos ao CNJ, o pedido não foi conhecido, infelizmente, e essas audiências têm acontecido. Os colegas impugnam a realização, são contrários, porque não é o fato de a tecnologia existir que permite que as audiências aconteçam dessa maneira. Contudo, lamentavelmente, essa prática tem acontecido contrariando todos os princípios internacionais que regulamentam a maneira pela qual os adolescentes devem ser julgados em um espaço em que permita a livre compreensão, que é diminuída em razão da idade.
Infelizmente, acreditamos que tal situação atende muito mais ao interesse da máquina judicial, que visa a produtividade de juízes e número de sentenças proferidas, mas não vê a qualidade desse trabalho. Isso é muito ruim para toda a sociedade e para todo o processo de afirmação do Estado de direito, porque uma sentença injusta pode provocar consequências enormes, como uma descrença no sistema judicial.
9. Qual a dificuldade das escolas de adolescentes infratores não utilizarem da mediação restaurativa, que a Lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) favorece como meio de reinserção social?
R.A: Essa dificuldade já vem do próprio processo judicial. A maioria dos casos envolvendo adolescentes em conflito com a lei não necessitaria de processo judicial em si. A imposição da medida socioeducativa é uma violência que se dá em resposta a outra violência. A gente deveria ter uma preocupação com a vítima, uma chance de reparar todas essas violências e também, obviamente, atender e entender porque aquela violência aconteceu e quantas violências aquela criança, aquele adolescente, já não sofreu ao longo da vida. Mas infelizmente não é assim, os processos continuam existindo e as sentenças proferidas são heterônimas e não autônomas, o que enfraquece esse processo de responsabilização.
Mas mudar essa cultura é muito difícil. Mudar a lei é muito fácil, mudar uma cultura judiciária é complicado, porque é difícil que aquele sujeito que está acostumado a sempre ditar o que é certo e o que é errado entenda que ele não vai ter o poder da decisão, mas que quem vai decidir são as partes em conflito – que é a base da justiça restaurativa. A raiz da cultura jurídica precisa ser modificada. Além disso, a utilização de técnicas de mediação na solução de conflitos nas unidades de internação é algo que deveria ser utilizado sistematicamente.
O Expresso 227 levanta discussões sobre temas diversos sob o recorte da infância. Você pode acompanhar todas as edições no Youtube do Alana.