Celebrar esse marco normativo é um chamado para colocar o Sinase em evidência e cobrar do poder público um diagnóstico sério e responsável de sua aplicação. É assumir um compromisso contra violações e desigualdades e se posicionar a favor da defesa dos direitos e do protagonismo de adolescentes no Sistema Socioeducativo
* Letícia Carvalho e Mayara Silva de Souza
Há nove anos, um marco na garantia dos direitos de adolescentes foi inaugurado. Em 18 de janeiro de 2012, a Lei Federal nº 12.594 instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Neste intervalo de tempo, o sistema socioeducativo brasileiro se estruturou amparado na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em normas internacionais. Celebrar marcos normativos como esse é retomar a importância do seu processo de construção, é reforçar o que está na letra da lei e um chamado para a avaliação da eficácia da sua aplicação.
Embora a lei seja de 2012, as diretrizes para o estabelecimento do Sinase foram estabelecidas seis anos antes, por meio da Resolução nº 119 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). A partir de um processo democrático que reuniu mais de 160 atores do Sistema de Garantias de Direitos, órgãos do Governo Federal, o Conanda e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), parâmetros objetivos foram definidos visando estabelecer uma verdadeira política pública.
Sustentado na absoluta prioridade dos direitos de adolescentes e em princípios de direitos humanos, o Sinase trata-se de uma política voltada para todas as medidas socioeducativas, em todas as suas fases. Estamos diante de uma política intersetorial que, de maneira objetiva, define competências e integra os sistemas nacional, estaduais, distrital e municipais, bem como todas as políticas, planos e programas específicos de atenção para adolescentes que possam vir a ser ou que já estão sendo responsabilizadas pela eventual prática de atos infracionais.
A letra da lei é categórica. A execução das medidas socioeducativas, conforme o Sinase, é regida pelo princípio da legalidade, ou seja, adolescentes não podem receber tratamento mais gravoso do que o conferido às pessoas adultas; pelo princípio da excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas sendo a privação de liberdade de adolescentes o último recurso do poder judiciário; pelos princípios da proporcionalidade e da brevidade da medida, devendo a privação de liberdade, quando restritamente necessária, ser cumprida no menor período possível; pelo princípio da individualização, considerando-se a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente; pelo princípio da mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida; pelo princípio da não discriminação de adolescentes, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status; e, ainda, estabelece como prioridade as práticas ou medidas que sejam restaurativas e o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo.
Estes princípios representam um avanço na legislação brasileira, contudo não garantem, na prática, seu pleno cumprimento, seja por parte das famílias, entidades responsáveis pela execução das medidas socioeducativas, ou até mesmo do sistema de justiça por falta de estruturas e limitações orçamentárias. Por isso, este aniversário de nove anos é um chamado para que haja mais que acompanhamentos e avaliações sistemáticas, como já é previsto em lei, mas também ações e atividades coletivas da sociedade civil e do Estado para garantia da prioridade absoluta dos direitos desta parcela da população. O último levantamento do Sinase, por exemplo, que deveria ser anual, embora publicado em 2019, apresenta dados de 2017.
É preciso reconhecer que a ausência de dados oficiais e atuais sobre o funcionamento do Sinase é uma falha no tratamento absolutamente prioritário que esses adolescentes devem receber. É preciso identificar e enfrentar todas limitações, riscos, e ameaças de retrocessos que impedem o avanço e a aplicação plena do Sinase, como por exemplo, discussões sobre redução da maioridade penal, aumento do tempo de internação, o porte de armas para agentes socioeducativos, dentre outros. Qualquer eventual violação a este sistema é inaceitável. É urgente valorizar o trabalho realizado por atrizes e atores do Sistema de Garantia de Direitos, divulgar boas práticas para inspirar ações e programas socioeducativos, assegurar a prioridade no atendimento, nos serviços e no orçamento, assegurar um ambiente limpo, seguro e livre de ameaças e violências, entre outras medidas necessárias que fortaleçam o Sinase.
Celebrar esse marco normativo é um chamado para colocar o Sinase em evidência e cobrar do poder público um diagnóstico sério e responsável da sua aplicação durante estes nove anos. É assumir um compromisso contra a marginalização, o racismo, a violência e as desigualdades que roubam infâncias, mas a favor da defesa dos direitos e do protagonismo desses adolescentes.
*Letícia Carvalho é bacharel em Direito e assistente jurídica no projeto Justiça Juvenil do programa Prioridade Absoluta.
Mayara Silva de Souza é advogada e responsável pelo projeto Justiça Juvenil do programa Prioridade Absoluta.