O poeta Manoel de Barros diz que a criança foi quem lhe deu a semente da palavra. Voltar à infância e à adolescência é pensar sobre quais relações estabelecemos com o mundo à nossa volta e quais ele estabelece conosco.

O Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Que tipo de perspectivas podem ser oferecidas à infância e adolescência neste cenário?  O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) faz 30 anos em 2020. E o que isso significa?  Conversamos com seis pessoas, pedindo que olhassem para suas infâncias e pensassem sobre a garantia de direitos e quais as influências destas ausências e presenças na vida de cada um. 

Se a paz só pode florescer na igualdade de oportunidades, uma constatação: falta-nos muito.

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Caroline Adesewa
Foto de Caroline Adesewa na infância
Caroline na infância

Afrocentridade e cura

Brincando de vendinha e de escola no enorme quintal do avô, Caroline Adesewa teve uma infância, diz, muito feliz. “Acho que devo ao brincar a mente criativa que tenho hoje”, conta a baiana, nascida em Salvador, no bairro do Pirajá. “Ao mesmo tempo, eram muitas tensões, muita tristeza. Eu sofria muito com o racismo, mas não sabia exatamente o que estava acontecendo”.

A pedagoga é a criadora do Afroinfância, um canal voltado para práticas educativas afrocentradas. Caroline é professora em São Francisco do Conde, cidade na região metropolitana de Salvador, e resolveu, em 2018, levar as discussões e atividades feitas na sala de aula para o Instagram. “Eu sentia falta de algo relacionado à infância e educação afrocentradas na rede. Foi dessa inquietação de não perceber nossa cultura sendo valorizada nas escolas que nasceu o projeto”. 

Promulgada há 17 anos,  a Lei 10.639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas ainda não encontra o devido eco nos currículos. “Nossa educação ainda é branca, eurocentrada. Não incorporamos outros valores e saberes e, às vezes, quando se tenta compartilhar acaba saindo de uma forma estereotipada, pejorativa”, lamenta Caroline.  

“A educação que recebi – eurocentrada – deixa lacunas. Não era a que eu e todas as crianças pretas merecemos”. Mais do que antirracista, o conteúdo de Caroline é o que ela chama de pró-identidade e cultura negras. É uma prática de valorização para além do viés único do racismo ou da escravização das pessoas negras a que relegam os saberes vindos de África. “Creio que esse projeto é uma tentativa de curar essa criança ferida pelo racismo que fui e de fazer com que mais crianças não passem por situações racistas, conflituosas, difíceis e vexatórias”, reflete.

Cheguei aos 33, sobrevivi

Quando criança, Bruno Ramos disse ao pai que sonhava em ser piloto de avião. Moleque, deixa de ser besta, olha de onde você veio. Pra conseguir isso, tem que ser filho de bacana. E outra, você não parece ser inteligente –  foi o que recebeu como resposta. Nascido e criado no Belém, bairro da Zona Leste de São Paulo, o articulador nacional do Movimento Funk e estudante da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo conta que a mãe sempre foi o esteio de sua casa. “Ela cuidou de nós quatro lavando roupa e fazendo faxina, sozinha”. Aos sete, Bruno começou a trabalhar como guardador de carros para dar uma ajuda em casa, garantir o pão, o leite, a manteiga e também poder comprar linha e pipa para brincar sem precisar pedir para a mãe. 

Até o fim do ensino fundamental I, Bruno gostava de estudar. Na quinta série, foi transferido para uma escola sucateada e ali, diz, entendeu que o caminho para a inserção social era a bagunça. Foi também quando começou a realizar pequenos furtos na rua – os chamados corres –  para garantir o lanche e um tênis bacana. “Cresce na gente uma revolta, que não conseguimos saber de onde vem. O dia que eu pedia pra tacar o terror na escola todo mundo me obedecia”, conta.

E foi em um dia desses que, ao ser abordado com violência por uma inspetora, a revolta de Bruno explodiu e, em um episódio de agressividade, foi encaminhado para a Pastoral do Menor. Ao chegar, sentou-se em frente à Tia Márcia, uma assistente social simpática. “Um amigo passou perto e fizemos uma graça um com o outro. A Tia Márcia riu”, conta Bruno. E foi essa risada e a abertura para ouvir o adolescente sem julgamentos que fez com que os dois estabelecessem uma relação de amizade. “Ali eu tive acesso à trabalho e renda, como jovem aprendiz; à educação, com cursos profissionalizantes; e também à cultura. Íamos para museus, teatros, shows”, relembra o ativista. 

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Bruno Ramos | Foto de Rafael Roncato
Foto de Bruno quando criança
Bruno na infância

Depois de sofrer um grave acidente trabalhando como motoboy, Bruno decidiu montar uma oficina de costura na garagem da mãe e criar sua marca de roupas. É então que entra para o universo do funk, quando os cantores passam a usar suas peças e ele ganha fama. É também quando conhece o empresário Marcelo Galático e, juntos, montam a Liga do Funk, um projeto social para formação de jovens periféricos. A iniciativa, que atingiu mais de 30 mil jovens, porporcionava aulas de canto, dança, produção musical, além de promover rodas de conversa sobre direitos e políticas públicas.

“A moda é um fator de inserção social extremamente forte”, diz Bruno. Ao fazer uma pesquisa para conhecer o público alvo de sua marca, ele descobriu que eram jovens em extrema vulnerabilidade econômica. Foi até alguns deles para conversar. “Uma camiseta da minha marca custava 180 reais. Aí eu começo a entender que os meninos estavam no corre pra conseguir minhas peças, assim como eu fazia alguns anos antes. Então, eu resolvi fechar a marca e me dedicar exclusivamente ao trabalho junto às políticas públicas”.

Em 2014, Bruno já era considerado uma das principais lideranças jovens do Brasil, foi Conselheiro Nacional de Juventude por dois mandatos e, hoje, segue no ativismo por acesso à direitos e justiça social no coletivo Favela no Poder.

“Cheguei aos 33, sobrevivi”, sorri Bruno. “Tudo me foi negado, direito à moradia , direito à educação, à segurança, acesso à informação”. E qual foi o principal direito que você teve garantido por meio do trabalho da Pastoral, pergunto. “O principal foi acesso. Acesso à direitos, espaços e conteúdos que eu nem sabia que existiam. Mas foi, também, o direito à passação de pano”, diz Bruno, esbanjando um largo sorriso, “que nada mais é que ter chance de alguma coisa na vida”.

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Thiago Queiroz
Foto de Thiago Queiroz quando criança
Thiago na infância

O afeto como missão

“Eu me tornei pai sem ter um pai” é essa a primeira frase do livro ‘Abrace seu filho‘, de Thiago Queiroz. Aos 16 anos, Thiago e o irmão foram acordados pela mãe com o caminhão de mudança na porta de casa. Os três se mudaram e ele só veio reencontrar o pai muitos anos depois, quando já era pai. “Minha relação com ele era de completa ausência afetiva”, conta.

Quando soube da gravidez do primeiro filho, começou a buscar conteúdos de referência a respeito da paternidade. “Quando peguei o Dante no colo caiu a ficha: eu quero fazer tudo diferente, não quero ser o que recebi como referência do meu pai”. Ao buscar informações sobre pais falando sobre paternidade, no entanto, encontrava muito pouco – e, na maior parte, eram materiais de humor sobre a inaptidão masculina ao lidar com bebês e crianças. 

Decidiu, então, criar o conteúdo que não encontrava. Criou o grupo Criação com Apego no Facebook, que hoje reúne quase cem mil pessoas. O engenheiro carioca mantém, ainda, desde 2003, o site Paizinho, Vírgula em que compartilha conteúdos sobre criação com apego, disciplina positiva e paternidade ativa a partir do dia a dia dos três filhos — Dante, Gael e Maya. 

“De uma certa forma, como criança, eu tinha direito de ter minhas emoções validadas e nunca tive. Toda criança deveria se sentir acolhida e ouvida na própria família”. Não à toa, Thiago diz ter como missão central a divulgação de uma forma de criar filhos mais afetuosa, sensível e respeitosa e é, hoje, uma das grandes referências da criação com apego e da disciplina positiva no Brasil.

Eu não posso esperar

Estude para ser alguém na vida. A estudante de jornalismo Camila da Silva cresceu ouvindo esse conselho dos pais. Vindos de Piranhas, no interior do Alagoas, sua mãe e pai começaram a trabalhar ainda crianças, aos 7 e 11 respectivamente. “Eu não precisei trabalhar até os 17 anos, resultado dos esforços coletivos dos meus pais e avós”, conta a jovem.

Filha única, Camila passou a infância no distrito de Fortaleza, em Guarulhos, na grande São Paulo, se dividindo entre brincar, descer a rua de motoquinha e estudar. Os pais faziam questão que estudo e brincadeiras fossem as únicas tarefas da filha. “Isso pra mim foi primordial. Se você começa a se dividir muito cedo, é difícil. Assim, eu consegui entender o trabalho como profissão, como carreira, e não apenas um meio para subsistência”.

As desigualdades têm efeitos desde muito cedo e um deles é a adultização precoce: “as crianças sentem as coisas. Você lembra quantos anos tinha quando teve sua primeira preocupação?”, indaga a estudante. Desde muito cedo, ela teve de assumir responsabilidades sobre seu futuro. “As oportunidades não chegam para pessoas negras e periféricas, eu não posso esperar”, diz. Aos 17 anos, Camila começou a trabalhar na É nóis – Agência de Jornalismo e foi  a primeira da família a entrar no ensino superior, no curso de jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como bolsista integral do Programa Universidade Para Todos (ProUni). 

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Camila da Silva
Foto de Camila na infância, vestida com chapéu e roupas de festa junina
Camila na infância
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Joyce Ribeiro
Foto de Joyce Ribeiro durante a infância
Joyce na infância

Responsabilidade compartilhada

“Eu não aguento mais noticiar a morte de crianças”, desabafa a apresentadora do Jornal da Tarde, da TV Cultura, Joyce Ribeiro. Nascida no Bixiga e criada em Santo Amaro, Joyce é a mais velha de três irmãos de uma família de classe média. “Sou privilegiada, sempre tive pais presentes e muita proteção”, conta a jornalista. 

Ela se lembra da mãe sempre atenta a todos os seus movimentos. Temos que vigiar sempre, repetia a mãe. “Eu não entendia na época, reclamava”. Hoje, como embaixadora da Plan International, organização que tem como missão garantir  igualdade para meninas, Joyce entende as aflições da mãe: “a ausência de proteção na vida de meninas cria situações irreparáveis”.

A jornalista conta que desde muito cedo sabia que queria seguir a profissão, chegava da escola correndo pra ver o jornal. “Tenho certeza absoluta que se eu não tivesse tido o acesso à educação garantido, minha história seria outra”, afirma Joyce.

A responsabilidade pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes é, segundo a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente, compartilhada entre Estado, família e sociedade. Para Joyce, contudo, esse tem sido um trabalho que recai quase exclusivamente sobre a família. Hoje mãe de duas meninas, ela conta que a parentalidade traz consigo, no atual cenário, uma preocupação sobre a necessidade de garantir absolutamente tudo para as filhas. “É algo muito solitário e exaustivo não poder contar com esse tripé. É uma sensação de que seu esforço individual precisa garantir a proteção e suprir tudo aquilo que seria tarefa da comunidade e do Estado”, analisa.

Comecei a saber o que era futuro

Nascido na virada do milênio, no Itaim Paulista, bairro da Zona Leste de São Paulo, o estudante da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Erick Araújo, lembra com carinho dos anos de educação infantil e fundamental I. Era bom aluno, daqueles que choravam ao ter a atenção chamada por qualquer razão. “Foram anos bastante bons”, relembra. Na quinta série,  foi transferido para a Escola Estadual Madre Paulina, conhecida na região por sua má qualidade. “Saiu até no jornal: o pior colégio de São Paulo. Posso te mandar a matéria, se quiser”, conta. Convencido de que não aprenderia nada ali, decidiu se rebelar. Foi um período conturbado.

Transferido de sala como punição, conheceu Margareth, uma professora de história que, diz ele, mudou sua vida. “A primeira lição que ela me passou, eu dei uma resposta revoltadinha. Ela me chamou pra fora da sala e conversamos”. Nasceu, então, uma amizade entre os dois e Erick ia para a escola só para assistir a aula de história. Foi a professora que indicou e emprestou o primeiro título de literatura adulta com que ele teve contato — Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Todos os dias, o estudante escrevia um texto e entregava para a professora, que devolvia corrigido com comentários. “Ela foi uma espécie de tutora, que contribuiu para que eu expandisse minha mente e desse um sentido pra raiva que tinha”, conta Erick.

A partir de então,  ele prestou vestibulinho para cursar o ensino médio na Escola Técnica da Zona Leste e passou. Foi quando teve acesso garantido à estrutura  — física e curricular — e tudo mudou, “comecei a saber o que era o futuro, quais eram as oportunidades que existiam pros jovens”, comenta. Alguns anos depois, Erick estava na primeira turma de estudantes cotistas cursando direito na USP. “Toda conquista que eu tenho, eu sinto que é um pouco por conta dessa professora”.

Hoje, no terceiro ano, Erick participa do movimento estudantil universitário, é diretor do Centro Acadêmico XI de Agosto, e participou da gestão da Casa do Estudante, moradia para estudantes de baixa renda. “Tudo aquilo que faltou também faz parte de quem nós somos. Esse acesso fragmentado a direitos é o combustível pra que eu construa um futuro em que esses dispositivos tenham mais efetividade para as futuras gerações”, conclui.

Fotos de Erick Araujo sorrindo
Erick Araujo
Foto mostra Erick quando bebê
Erick na infância

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