“Em todos os países do mundo existem crianças vivendo sob condições excepcionalmente difíceis”. A constatação de que, no mundo todo, poderia ser feito mais por crianças e adolescentes fez a Assembleia Geral da ONU, em 20 de novembro de 1989, adotar a Convenção sobre os Direitos da Criança, dando voz e direitos a essa população em todo o mundo. Ratificada por 196 países é, até hoje, o mecanismo de direitos humanos mais aceito na história; apenas os Estados Unidos não se comprometeram a segui-lo.
No Brasil, o tratado ganhou força de lei em 21 de novembro de 1990. Poucos meses antes, em 13 de julho do mesmo ano, o país se antecipava ao criar o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), também um marco na proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, por assegurar proteção integral e avançar na construção de políticas públicas para essa população
Os países que assinaram a Convenção são obrigados a apresentar relatórios de acompanhamento periodicamente. No caso do Brasil, o próximo relatório deve ser enviado pelo governo em 2021.
“Diversamente da Declaração Universal dos Direitos da Criança, que sugere princípios de natureza moral, sem nenhuma obrigação, a Convenção tem natureza coercitiva e exige de cada Estado-Parte que a subscreve”, explica Josiane Rose Petry Veronese, professora titular de direito da criança e do adolescente da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e autora de “Convenção sobre os Direitos da Criança – 30 anos” (JusPODIVM, 2019).
O que estabelece a convenção, entre outros aspectos:
>> Crianças e adolescentes não são objetos pertencentes aos pais nem mini adultos; são seres humanos e indivíduos com seus próprios direitos;
>> Meninos e meninas devem poder crescer, aprender, brincar e se desenvolver dignamente;
>> Criança é toda pessoa de zero a 18 anos, a não ser em países onde a maioridade seja alcançada antes; no Brasil, o ECA considera criança a pessoa de zero a 11 anos, e adolescentes aqueles entre 12 e 18 anos de idade.
>> Nenhuma criança deve ser submetida a tortura ou a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. Não serão impostas a pena de morte e a prisão perpétua por delitos cometidos por pessoas menores de 18 anos de idade;
“A Convenção consolida, entre outros aspectos, a importância do respeito aos valores culturais da comunidade da criança e o papel vital da cooperação internacional para o cumprimento dos Direitos da Criança, o que redunda numa melhoria das condições de vida da população infantoadolescente em todos os países, sobretudo dos em via de desenvolvimento”
Josiane Rose Petry Veronese, professora da UFSC
Avanços
A Convenção avança ao colocar como norma a ser seguida pelos países signatários:
>> A necessidade de tratar a criança como protagonista;
>> A ideia de proteção contra toda forma de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos, exploração e discriminação;
>> O veto à pena de morte para crianças
>> O direito ao lazer, ao descanso e a atividades próprias da sua idade;
>> O direito à educação inclusiva;
“O Brasil foi um dos primeiros países do mundo a criar, em 1990, uma legislação, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em resposta à sua adesão à Convenção sobre os Direitos da Criança, dispondo sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”, aponta o relatório “Child Rights Now!”, apresentado em julho de 2019 pelo grupo Joining Forces.
“O Brasil foi até mais longe do que as previsões da Convenção – o país se antecipou para incluir no artigo 227 da Constituição a obrigação do Estado em assegurar, com absoluta prioridade, direitos à criança e ao adolescente. O ECA é mais amplo, pormenorizado, por isso é referência para muitos países do mundo”, diz o advogado Ariel de Castro Alves, conselheiro do Condepe (Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana), vinculado ao governo do Estado de São Paulo.
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Artigo 227, Constituição Federal
Cenário atual: desafios e retrocessos
Uma das dificuldades, segundo especialistas, é assegurar recursos para a execução das políticas públicas e, consequentemente, cumprir o que prevê a Convenção. O artigo 4º do ECA, afirma Mayara Silva de Souza, advogada do Prioridade Absoluta, iniciativa do Instituto Alana, prevê a destinação privilegiada de orçamento para políticas voltadas para crianças e adolescentes. Essa previsão, diz ela, é fundamental para a garantia da prioridade absoluta estabelecida no artigo 227 da Constituição Federal. Para a irmã Veroni Medeiros, responsável pela área técnica de desenvolvimento infantil da Pastoral da Criança, em Curitiba, “a intenção [da legislação] é muito boa, mas, na minha perspectiva, ainda carecemos muito de prática.”
“É inegável que tivemos grandes avanços para políticas voltadas à infância e à adolescência, especialmente nas últimas décadas. Contudo, ainda temos milhares de crianças e adolescentes vivendo em condições de extrema vulnerabilidade”, pontua Souza. Ela cita como exemplo de impacto negativo a Emenda de Teto de Gastos Públicos. Promulgada em 2016, durante o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), a emenda aprovada no Congresso limitou os gastos públicos pelos próximos 20 anos. “Não à toa, quando se aventou a possibilidade do estabelecimento da emenda, especialistas indicaram que haveria uma piora na qualidade de vida e saúde, especialmente de crianças e adolescentes. Dois anos depois da medida em vigor, estamos presenciando um aumento na mortalidade infantil, epidemia de doenças antes extintas e aprofundamento das desigualdades. Ou os tomadores de decisão se comprometem de fato com a infância e adolescência – e isso significa destinar orçamento – ou vivenciaremos uma crise ainda maior”, conclui.
A avaliação mais recente da ONU quanto ao cumprimento da Convenção é a do Comitê dos Direitos da Criança, de 30 de outubro de 2015. O documento aponta que o Estado tem deixado de investir recursos na proteção à criança e ao adolescente e de coordenar ações entre as mais diversas esferas de governo.
“Alguns números revelam com precisão como os direitos básicos de crianças e adolescentes no país ainda não são respeitados: são cerca de 33 milhões (61% do total) vivendo na pobreza ou em situação de privação de direitos, 2,5 milhões fora da escola, cerca de 47 mil vivendo em serviços de acolhimento, mais de 9 mil vítimas de homicídio por arma de fogo, 109 mil meninas de 15 a 19 anos que se casaram em 2017 e mais de 100 mil meninas que se estima sofrerem violência sexual todos os anos.”, diz trecho do relatório “Child Rights Now!
> Entre 2016 e 2017, o número dos extremamente pobres, quem vive com menos de R$ 140 mensais, saltou de 6,6% para 7,4% dos brasileiros, segundo o IBGE.
> Entre 2016 e 2019, nenhum orçamento autorizado para políticas públicas destinadas às crianças e adolescentes foi gasto integralmente. Em 2017, do recurso destinado à Educação Infantil, apenas 45,9% foi utilizado. Quanto aos recursos destinados à fiscalização do trabalho infantil, em 2016 e 2017, menos de 10% do orçamento foi executado e, nos anos seguintes, essa ação nem foi contemplada no planejamento do governo.
> O índice de mortalidade infantil voltou a crescer depois de quase 30 anos de queda
“Nesse dia em que celebramos a Convenção e a necessidade de sua implementação completa, é sempre importante lembrar: defender os direitos de crianças e adolescentes é um dever, não uma escolha. E cabe a todos nós: Estado, família e sociedade”, lembra Mayara Souza.