*Por Guilherme Perisse
No momento em que vivemos de instabilidades na política e no país, me proponho a apresentar uma forma positiva de atuação em prol da garantia dos direitos e da efetivação do que está previsto na Constituição Federal.
Falo mais especificamente da norma da prioridade absoluta. Uma conquista da sociedade brasileira, a prioridade absoluta é um marco da mudança das lentes utilizadas pela legislação para enxergar a infância. É a partir desse marco que se passou a olhar para a criança como pessoa em especial condição de desenvolvimento, digna de receber proteção integral e de ter garantido seu melhor interesse.
Foi a mobilização da sociedade que levou à assembleia constituinte de 1987 duas propostas de iniciativa popular — “Criança e Constituinte” e “Criança: Prioridade Nacional” — que serviram de base para o texto do artigo 227 da Constituição Federal[1], marco constitucional que deu origem ao Estatuto da Criança e do Adolescente.
O programa Prioridade Absoluta
Com a missão de informar, sensibilizar e mobilizar os profissionais do direito a agirem em defesa dos direitos das crianças, assim como fizeram os ativistas de 1987, o Programa Prioridade Absoluta, do Alana, foi criado em 2014 e desenvolve ações nesse sentido.
A escolha de profissionais do Direito tem um motivo: a constatação de que os procedimentos técnicos jurídicos tem um enorme potencial transformador no que diz respeito à garantia dos direitos das crianças. O objetivo é aproveitar o potencial desses profissionais que são conhecedores das leis e das formas de provocar as instituições capazes de garantir seu cumprimento.
Vale lembrar que quando se fala em profissionais do direito, refere-se a Advogadas(os), Assistentes Sociais, Psicólogas(os), Conselheiras(os) de Direitos, Conselheiras(os) Tutelares, Juízas(es), Promotoras(es) de Justiça e Profissionais das Polícia, que atuem com questões relacionadas ao sistema de garantias da infância.
A prioridade absoluta, um dever de Estado, família e sociedade
Redigido de forma compatível com as peculiaridades da infância, o artigo 227 da Constituição Federal é bastante abrangente e impõe ao Estado, à sociedade e a família o dever de assegurar às crianças, com prioridade absoluta, “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Ao considerar a peculiar condição de desenvolvimento da criança, impõe a necessidade de coordenação dos diferentes atores para garantia plena dos direitos das crianças. O direito ao aleitamento materno, por exemplo: apenas a mãe (família) é capaz de oferecer. No entanto, sem uma tutela estatal que assegure à ela licença maternidade remunerada, a garantia deste direito estaria prejudicada. O mesmo ocorre em casos de extrema vulnerabilidade social, em que o apoio do Estado e da sociedade pode ser necessário para que se tenha condição de garantir a convivência familiar saudável, essencial ao desenvolvimento da criança.
Na prática
Prevista no artigo 227 da Constituição Federal, a norma da prioridade absoluta é regulamentada pelo artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente que não deixa dúvidas sobre sua força normativa, ao estabelecer que a prioridade absoluta compreende:
– a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
– a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
– a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas, e;
– a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Assim, do ponto de vista legal e constitucional, enquanto não existirem creches, escolas, postos de saúde, leitos hospitalares capazes de atender satisfatoriamente a todas as crianças, não se deveria realizar nenhum investimento em ações como a construção de estádios, monumentos etc.
Em complemento, todos os serviços públicos devem ser organizados de modo a assegurar que os serviços destinados à garantia dos direitos das crianças tenham atendimento prioritário e toda a política pública deve ser formulada levando em conta a garantia dos direitos das crianças correlatos ao que se estiver realizando.
Infelizmente, apesar da indiscutível qualidade da norma e de sua abrangência, não se verifica, concretamente, o seu cumprimento. Tal percepção é da sociedade brasileira, que em pesquisa realizada em 2013 pelo instituto Datafolha se mostrou favorável à aplicação da norma (94%), apesar de 81% dos pesquisados confessarem estar pouco ou nada informados sobre os direitos das crianças.
Assim, o desafio da sociedade, do Estado e das famílias é efetivar esta norma vigente há 29 anos, e que tem o potencial contribuir para a garantia de uma série de outros direitos da criança, que apesar de previstos pela legislação, ainda não têm a devida aplicação prática. Para tanto, é essencial que os direitos das crianças, bem como suas características e peculiaridades sejam do conhecimento de toda a sociedade, que deve cobrar do poder público as ações proteção, promoção e defesa dos direitos das crianças, com prioridade absoluta.
[1] Kaminski, André. Conselho Tutelar no Estatuto da Criança e do Adolescente. Porto Alegre: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, 2010. Disponível aqui.
* Guilherme Perisse é advogado do programa Prioridade Absoluta, do Alana.