É essencial que a regra da prioridade absoluta e os princípios das medidas socioeducativas sejam cumpridos de maneira a respeitar as especificidades de gênero e garantir a subjetividade das meninas mesmo durante a privação de liberdade
Por Letícia Carvalho e Mayara Silva de Souza*
Em 2017, meninas representavam 4% (1.046) da população em atendimento socioeducativo. Este número aparentemente baixo, somado ao atual sistema social patriarcal que vivemos no Brasil – onde homens brancos predominam em funções de liderança política, autoridade e privilégio social – as coloca em um cenário de invisibilidade. Importante considerar ainda, que o racismo e a desigualdade social são situações que agravam as condições das meninas no sistema socioeducativo, uma vez que a privação de liberdade e o afastamento familiar e comunitário, por si só, as colocam em situações de vulnerabilidades, uma vez que são pessoas em peculiar e intenso estágio de desenvolvimento que necessitam de cuidados próprios que apenas a garantia plena dos seus direitos, com absoluta prioridade, pode assegurar.
No sistema socioeducativo as adolescentes são responsabilizadas por eventuais práticas infracionais. Desta maneira, para o senso comum, elas são consideradas pessoas em conflito com a lei e estigmatizadas, enquanto desviantes da norma social, como menores infratoras e perigosas. Este artigo propõe retomar um olhar para essas adolescentes a partir do que elas exatamente são: sujeitos de direitos, em especial estágio de desenvolvimento e protagonistas de suas histórias.
Por esta razão, analisar a política pública socioeducativa a partir da perspectiva de gênero é uma tarefa urgente, considerando que, não identificar as interseccionalidades existentes nas relações sociais, significa não garantir que os direitos de crianças e adolescentes sejam efetivados com absoluta prioridade, conforme determina o Artigo 227 da Constituição Federal.
Em 2007, a pesquisa Meninas Privadas de Liberdade, da pesquisadora Malena Bello Ramos, analisou as interfaces da questão de gênero e das políticas públicas na construção social da vulnerabilidade penal de meninas privadas de liberdade. Dentre os resultados, o estudo apontou a incapacidade de incluir as particularidades de gênero ao atendimento das meninas.
Incapacidade esta que resulta na já citada invisibilidade, que não se dá apenas no campo social, mas também no campo acadêmico. Na pesquisa Medida Socioeducativa De Internação Na Case/Salvador, realizada em 2011, a professora Jalusa Arruda chama atenção para o baixo número de estudos sobre a situação específica das meninas no sistema socioeducativo, apontando também a maneira como o sistema reproduz as desigualdades de gênero dentro das unidades de internação. A pesquisa indica ainda que a execução da internação se assemelha às medidas previstas no período da vigência da doutrina da situação irregular, com representativas demarcações em razão do gênero.
Em 2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou o relatório Dos espaços aos direitos: a realidade da ressocialização na aplicação das medidas socioeducativas de internação das adolescentes do sexo feminino em conflito com a lei nas cinco regiões, que buscou compreender a realidade do cumprimento da medida socioeducativa internação para adolescentes do sexo feminino. A pesquisa reafirma que ser menina no sistema socioeducativo é ser invisível, neste sentido as informações de renda e cor também não são identificadas; e embora a informação sobre cor das adolescentes não estivesse presente nos documentos avaliados, as visitas realizadas a todas as unidades evidenciaram a predominância de adolescentes não brancas, são exemplos, os estados de São Paulo e Pernambuco com 72% e 62%, respectivamente, de adolescentes não brancas.
Em 2017, a pesquisa realizada pela Anis – Instituto de Bioética, Meninas fora da lei: a medida socioeducativa de internação no Distrito Federal, identificou que a vida da grande maioria das meninas em privação de liberdade remonta ciclos de desamparo, de momentos em situação de rua, de evasão escolar, de abusos emocionais, físicos e sexuais, bem como de violências no seio da própria família. Considerar essas realidades é fundamental não para estigmatizar ainda mais essas adolescentes, mas sim para reconhecer que, em diversos momentos dessas trajetórias, o Estado, a sociedade e as famílias falharam, pois não garantiram proteção à infância e à adolescência.
Importante destacar, ainda, que as meninas são as maiores vítimas do trabalho infantil de tráfico de drogas – conforme estabelece a Convenção 182 sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação da Organização Internacional do Trabalho. De acordo com os dados do Levantamento Anual do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo de 2017, a prática infracional mais atribuída às meninas é o tráfico de drogas, com um percentual maior em relação aos meninos.
É essencial que a regra da prioridade absoluta e os princípios das medidas socioeducativas sejam cumpridos de maneira a respeitar as especificidades de gênero e garantir a subjetividade das meninas mesmo durante a execução das medidas socioeducativas. Para tanto, é importante que dados sejam constantemente atualizados e que sejam desagregados a partir de gênero, raça, classe e idade.
É necessário remodelar o debate e as reflexões sobre o sistema socioeducativo, inspirando o cuidado, a atenção, a proteção e reconhecendo que as medidas socioeducativas, sobretudo as de privação de liberdade, são medidas extremas e dramáticas as quais afetam sobremaneira a vida de meninas adolescentes e a construção de relações com a comunidade, com a sociedade e com seus sonhos e planos. Enquanto corresponsáveis pela garantia da proteção integral e prioritária dos direitos desta parcela da população, não podemos deixar que os objetivos de responsabilização e de desaprovação da conduta infracional limitem a integração social por meio de violências institucionais, como machismo, racismo e violências de gênero.
*Letícia Carvalho é estudante de Direito e estagiária no projeto Justiça Juvenil do programa Prioridade Absoluta.
Mayara Silva de Souza é advogada e responsável pelo projeto Justiça Juvenil do programa Prioridade Absoluta.