A intensa mobilização da sociedade civil e aprovação unânime no Congresso Nacional demonstram a importância de construções entre diferentes atores para a garantia de direitos
Por Ana Claudia Cifali e Renato Godoy*
Neste ano, o Marco Legal da Primeira Infância completa cinco anos. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), publicada em 2019, existiam 19 milhões de crianças no Brasil com idade entre zero e seis anos, faixa etária compreendida como “primeira infância”. E é justamente essa parcela da infância que mereceu um olhar mais atento por parte do poder público nos últimos anos.
Porém, importante destacar que esta construção faz parte de uma trilha de avanços no que se refere à proteção da infância nos últimos 30 anos no país. Em 1988, o artigo 227 da Constituição da República determinou como dever da família, da sociedade e do Estado a proteção dos direitos da criança e do adolescente com absoluta prioridade. Assim, o termo “menor”, utilizado até então com forte viés discriminatório, deu lugar à noção da criança como cidadã, como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, compreensão que justifica sua proteção integral e a garantia prioritária de seus direitos.
Tal artigo é considerado a base normativa para a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), eis que era preciso regulamentar a nova situação legal consolidada constitucionalmente. Desta forma, o ECA avançou ainda mais no que tange à garantia de direitos dessa parcela da população, indicando que a absoluta prioridade deve alcançar a preferência na formulação e execução de políticas públicas e orçamentárias.
Na última década, a neurociência vem demonstrado a importância dos cuidados na primeira infância para o desenvolvimento humano, confirmando o que há muito era pesquisado e desenvolvido por autores como Piaget, Vygotsky e Bronfenbrenner. Essas pesquisas apontam que o pico de desenvolvimento de importantes habilidades e capacidades humanas, como a audição, a visão e funções cognitivas, por exemplo, se dão nos primeiros meses e anos de vida. Além disso, surge a imagem simbólica do desenvolvimento como uma casa, em que é preciso estabelecer fundações sólidas para garantir sua estabilidade. E tais fundações são construídas, justamente, na primeira infância.
Assim, diversos estudos vêm apontando o impacto positivo que o cuidado, o afeto, e a educação nessa fase têm sobre a sobrevivência, o crescimento e o potencial de aprendizagem da criança. Da mesma forma, pesquisas apontam que as desigualdades na primeira infância, em suas múltiplas dimensões (renda, gênero, idade, educação, saúde e violência), tendem a aprofundar-se e consolidar-se ao longo da vida. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que se configura como uma janela de oportunidades, a primeira infância é um período de extrema vulnerabilidade, motivo pelo qual a proteção e o desenvolvimento integral neste momento da vida merece especial atenção. De acordo com Mary Young, do Centro de Desenvolvimento da Criança da Universidade de Harvard, isto significa “equidade desde o início”.
Atentos a tais desenvolvimentos, um amplo grupo de atores da sociedade civil, dos poderes legislativo, executivo e judiciário, uniram-se em torno desta agenda, surgindo, assim, o Marco Legal da Primeira Infância, aprovado em 2016, mas cuja construção vinha sendo tecida ao longo da década. No âmbito do Congresso Nacional, em 2013, foi instituída a Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância, composta por mais de 200 parlamentares de diversos partidos. No mesmo ano, deputados federais passaram a integrar a recém criada Red Hemisférica de Parlamentarios y Ex Parlamentarios por La Primera Infancia, uma iniciativa que reúne parlamentares de 17 países da América Latina, e que busca mobilizar ações e políticas públicas relacionadas à primeira infância em seus respectivos países, para promover um processo de sensibilização, gestão e difusão do conhecimento em torno da atenção integral desse público.
Ainda em 2014, o projeto de lei foi objeto de uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados, contando com a participação de parlamentares comprometidos com a agenda e com o engajamento de organizações da sociedade civil que atuam na defesa dos direitos da criança e do adolescente. Além disso, os parlamentares integrantes da Comissão participaram do Programa de Liderança Executiva em Desenvolvimento da Primeira Infância, uma iniciativa do Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI), que reúne organizações como a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), a Universidade de Harvard, o Insper, a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e a Fundação Bernard van Leer. Também foram realizadas audiências públicas, seminários regionais e reuniões técnicas, com contribuições de especialistas e de universidades.
Nesta época, também estava sendo produzido o documentário “O Começo da Vida”, uma iniciativa do Instituto Alana, FMCSV, Bernard Van Leer e Unicef, como uma forma de trazer o tema da primeira infância para um público maior de pessoas, traduzindo todo o conhecimento científico em linguagem cotidiana e, assim, gerando ainda mais engajamento para o tema. Alguns trechos do documentário inclusive foram divulgados para estimular os debates sobre o tema.
Com o Marco Legal da Primeira Infância aprovado, mais um passo foi dado na caminhada pelos direitos da infância. A Lei nº 13.257, de março de 2016, estabelece princípios e diretrizes para a formulação de políticas públicas que visam atender de forma mais efetiva os direitos da criança na primeira infância. Além disso, o Marco Legal busca superar a segmentação de ações e aumentar a eficácia das políticas, definindo estratégias de articulação intersetorial e diversas áreas de ação prioritárias, passando pela importância da convivência familiar e comunitária, da cultura e do brincar, da proteção contra toda forma de violência e pressão consumista, entre outras.
Por fim, vale lembrar que estudo publicado por professores da Universidade de Harvard em 2019, intitulado “Unified Welfare Analysis of Government Policies”, demonstra que o investimento em infância e adolescência é aquele que mais traz retornos para a sociedade – sobretudo os investimentos realizados em áreas socialmente vulneráveis -, gerando benefícios em setores como educação, saúde, previdência e segurança pública. No mesmo sentido, estudos recentes de James Heckman, Nobel em Economia em 2000, apontam que o investimento na primeira infância gera um retorno para a sociedade de 7 a 10% ao ano, com base em melhorias da escolaridade, do desempenho profissional, e também diante da redução de gastos em saúde e no sistema penal.
A ampla participação social e um embasamento teórico sólido garantiram a legitimidade da proposta e a consolidação da relevância estratégica do investimento nos primeiros anos de vida para toda a sociedade. Assim, a aprovação unânime do Marco Legal da Primeira Infância e a assinatura do Pacto Nacional pela Primeira Infância por representantes dos três poderes e de organizações da sociedade civil são exemplos emblemáticos em termos de articulação social pela garantia de direitos da infância, demonstrando a importância de construções permeadas pelo diálogo entre diferentes atores no âmbito do Congresso Nacional.
Em tempos de negação do conhecimento científico, a união entre o parlamento, a academia e a sociedade civil em torno da primeira infância é uma demonstração da importância do comprometimento dos parlamentares com a construção de políticas públicas baseadas em evidências. Nos Estados Unidos, inclusive, já há um diploma vinculante nesse sentido: a Public Law 115-435, de 2019 (Foudations for Evidenced-Based Policymaking Act of 2018), segundo a qual todas as políticas públicas devem ser concebidas e desenvolvidas com base em dados e informações concretas, científicas e confiáveis. Que a ciência possa superar os “achismos”, especialmente quando falamos da construção de políticas públicas voltadas aos sujeitos constitucionalmente detentores de atenção prioritária: crianças e adolescentes.
*Ana Claudia Cifali é advogada do Instituto Alana
Renato Godoy é coordenador de Relações Governamentais do Instituto Alana