Por Pedro Hartung*
Certa vez, durante o ‘V Congresso Internacional da Infância’, ouvi o sociólogo argentino Eduardo Bustelo afirmar categoricamente que a relação mais desigual ainda persistente em nossa sociedade não era a baseada na opressão de classe social entre ricos e pobres, nem tão pouco aquela advinda da violência de gênero entre homens e mulheres ou, ainda, de questões étnico-raciais, mas sim a relação estabelecida entre os adultos e as crianças.
A crescente existência no Brasil de espaços que não aceitam crianças (child free) ou da recorrente manifestação pública de pessoas que de forma não constrangida dizem odiar crianças, mostra que, apesar de infrutífero o debate sobre qual relação é mais desigual que a outra, a grave afirmação de Bustelo merece ser refletida.
Segundo ele, diferentemente das outras que, a despeito de também fortemente existentes, passaram por um histórico movimento de organização política e social para contestá-las, a desigualdade (e violência) na relação entre adulto e criança é amplamente naturalizada.
Aceitamos passivamente que crianças sejam submetidas diariamente a tratamentos cruéis por parte de adultos que possuem o dever de cuidá-las e protege-las, mas ao invés disto, exercem o controle dos corpos e mentes infantis como forma de satisfazer seus próprios interesses, mesmo que de forma inconsciente.
Uma possível explicação, mas não justificativa, para a naturalização dessa desigualdade seja pelo fato da criança, por sua condição de desenvolvimento inconcluso, ser um indivíduo de fato mais vulnerável e dependente do cuidado de outrem, de um adulto. Contudo, vulnerabilidade não pode ser confundida com subcidadania. O fato de serem heterônimas, não nos dá o direito de tratarmos as crianças como cidadãos de segunda ordem, ou até mesmo, de desconsiderá-las nos espaços públicos e privados de convivência em sociedade.
A criança não vota; a criança não participa nos espaços de elaboração e decisão de políticas públicas; a criança, muitas vezes, não é considerada nem nos espaços supostamente voltados para o seu desenvolvimento, como nas escolas ou em suas próprias famílias. Ela ainda é o infante [in-fante], aquele que não fala. Silenciada, é tida como objeto de posse e de intervenção; não é reconhecida no âmbito da vida como sujeito de direito pleno, capaz, senciente e desejante.
Proibir, mesmo que de forma sugestiva, que a criança, simplesmente por sua condição existencial, não possa estar em determinados espaços que não apresentem riscos ao seu desenvolvimento, como restaurantes, cafés, hotéis ou aviões, ou ainda, manifestar ódio publicamente contra esse grupo específico da população, não só demonstra uma moralidade infantofóbica questionável e intolerante, mas também configura-se um flagrante ato ilegal de discriminação.
A Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU de 1989, o tratado internacional mais assinado no mundo, ratificado pelo Brasil em 1990, proíbe em seu artigo 2o qualquer forma de discriminação contra a criança ou seus responsáveis.
Ainda, nossa Constituição Federal de 1988 determinou como objetivo fundamental (artigo 3o, IV) promover o bem de todos “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, prevendo punição para qualquer ato discriminatório que atente contra direito ou liberdades fundamentais (artigo 5o, XLI), como o direito das crianças e seus responsáveis de irem e permanecerem juntos em espaços sociais de convivência.
Sobre isso, o artigo 227 da Constituição e o artigo 4o do Estatuto da Criança e do Adolescente, que acertadamente conferem à criança prioridade absoluta na efetivação de seus direitos, são claros em afirmar que é dever de todos — família, Estado e sociedade, inclusive estabelecimentos comerciais e empresas –, colocar as crianças a salvo de toda forma de discriminação.
Importante sempre lembrar que não é necessário gostar de alguém para respeitar seus direitos. Direitos humanos são aqueles que possuímos a titularidade pelo simples fato de existirmos como pessoa, independente do gosto ou opinião alheia. E é isso que as crianças o são: pessoas. Em verdade, por sua condição peculiar de desenvolvimento, são pessoas com um status especial de proteção, por termos compreendido com o avanço das ciências que a primazia do melhor interesse da criança é fundamental para o sadio e integral desenvolvimento dos indivíduos, de suas habilidades cognitivas e sócio-emocionais.
Assim, não é somente uma questão de obrigação legal a necessidade da integração da criança e do reconhecimento de seus direitos e suas necessidades nos diversos espaços da vida social, mas um imprescindível posicionamento jurídico e político estratégicos para o desenvolvimento civilizatório.
Isto porque crianças livres e capazes de usufruir de todos os seus direitos previstos em lei não beneficiam somente o desenvolvimento do indivíduo, mas igualmente o avanço de toda a sociedade, conforme comprovado pelo economista James Heckman. Conforme sua pesquisa, o investimento e a proteção social dada às crianças é uma estratégia efetiva para a redução de custos sociais, como índices de pobreza, criminalidade, abandono escolar e gastos com saúde. Permitir que as crianças sejam crianças gera, segundo o prêmio Nobel de economia, crescimento econômico.
Muitos podem pensar que tais argumentos que conectam o desenvolvimento social com a exclusão de crianças de espaços ou banalização do ódio a elas seriam um exagero retórico ou até mesmo um devaneio simplista. Entretanto, não podemos esquecer que as mudanças sociais e políticas que tanto queremos estão também na forma que lidamos cotidianamente com as pequenas e grandes decisões morais, inclusive na fala.
Referir-se a crianças de maneira degradante é o primeiro passo para a naturalização de outros tipos de violência, pois permite a descaracterização no âmbito simbólico de sua condição humana, difundindo o ódio e o desrespeito a um grupo específico.
Segregar crianças de espaços que não apresentem risco a sua integridade física, psíquica ou moral é decidir, contrariamente à lei e à democracia, por uma sociedade menos igual, menos diversa, menos inclusiva e, portanto, uma sociedade menos rica de valores e de afetos.
Tal posicionamento é contrário às tendências de países, cidades e comunidades líderes em qualidade vida, onde o planejamento urbano e os espaços de convivência são pensados em conjunto com as crianças, escutando-as e permitindo que elas explorem com segurança os diversos ambientes, adquirindo progressivamente o senso de autonomia, responsabilidade e cidadania.
Uma comunidade acolhedora à criança, certamente será um lugar melhor para todos nós. Isso não significa, contudo, um processo de infantilização dos espaços ou, ainda, uma inclusão segregadora, onde ambientes exclusivos são criados como forma de se evitar o contato, tal qual nos já conhecidos e históricos processos de apartheid étnico-racial pelo mundo ou nas atuais e novas alas sem crianças dos aviões.
Talvez o fato de não querermos o contato e o encontro com o incômodo choro, as espontâneas risadas, as altas e alegres brincadeiras das crianças, seja o medo de enfrentarmos em nós a perda dessas mesmas emoções e sentimentos. A normose embrutecida da nossa sociedade contemporânea tem nos apartado e nos deseducado para o sentir solidário e compassivo.
No entanto, o antídoto a isto é, surpreendentemente, o próprio encontro. Um encontro diverso e irrestrito. Somente por meio dele educamo-nos uns aos outros. Aliás, como podemos pensar na educação de todas as crianças como solução à pandemia de problemas que enfrentamos atualmente no Brasil, se não convivermos com elas em diferentes espaços e situações? Como podemos pensar em democracia se não adotamos processos democráticos nas instituições da nossa vida social, incluindo todos aqueles que fazem parte dela, em especial as crianças?
Como pensar, enfim, em Humanidade se não acolhermos quem acaba de chegar a ela?
Enquanto a dignidade de cada criança não for reconhecida e assegurada, não somente no âmbito da lei escrita, mas principalmente no mundo da vida, precisamos nos transformar todos em verdadeiros advogados pelas várias e diversas infâncias, escutando sensivelmente suas vozes interditadas, em especial as das crianças que sofrem o peso das múltiplas opressões e desigualdades de gênero, classe social e étnico-racial.
Comecemos, então, pelo café da esquina, o restaurante preferido, o parque da rua ou a escola do bairro. Comecemos mudando nossos hábitos de fala, cultivando o respeito e o reconhecimento da dignidade de todos. Deixemos as crianças livres para que suas vozes possam ecoar por meio do choro, do riso ou do grito. Talvez assim, seja recordada em nós nossa humanidade tão adormecida.
Pedro Hartung* é coordenador do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana