O Marco Legal e as decisões do STJ e do STF que reconhecem o direito de meninas aguardarem julgamento em casa, com seus bebês, são fundamentais para concretizar a dupla prioridade absoluta exigida nesses casos
* Letícia Carvalho e Mayara Silva de Souza
Com maestria, bell hooks defende que “é nossa responsabilidade dar amor às crianças. Quando as amamos, reconhecemos com nossas próprias ações que elas não são propriedades, que têm direitos ― os quais nós respeitamos e garantimos”¹. Essa afirmação está alinhada à moldura constitucional brasileira e internacional segundo a qual crianças e adolescentes são sujeitos prioritários de direitos. Contudo, como dar visibilidade e, principalmente, transformar a realidade de crianças inseridas no sistema socioeducativo?
Um passo importante para responder a esse questionamento foi a promulgação do Marco Legal da Primeira Infância, Lei nº 13.257, que em março de 2021 completa 5 anos. Em 2016, essa inovação legislativa de grande relevância estabeleceu princípios e diretrizes para formulação e implementação de políticas públicas para a primeira infância. Pautada na redução das desigualdades, na atenção ao melhor interesse da criança, na sua participação em decisões que lhe digam respeito, entre outros princípios, a lei assegura a máxima efetividade do Artigo 227 da Constituição Federal e de outros diplomas normativos como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Convenção sobre os Direitos da Criança.
Por meio do Marco Legal da Primeira Infância, o artigo 318 do Código de Processo Penal foi modificado no sentido de garantir a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar de mulheres gestantes ou mães de crianças de até 12 anos de idade, com o objetivo de garantir a convivência familiar e a presença materna nos primeiros anos de vida longe dos espaços degradantes e indignos do cárcere. Prisões não foram pensadas para crianças ou para o exercício da maternidade, tampouco as unidades socioeducativas. Considerando que adolescentes não podem receber tratamento mais gravoso que adultos, segundo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, Lei 12.594 de 2021, essas garantias legais devem se estender a adolescentes.
Posto isso, o Marco Legal da Primeira Infância foi fundamental para embasar a atuação do sistema de justiça, especialmente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Ainda em 2016, fazendo referência a essa legislação, o STJ proferiu decisão em habeas corpus individual garantindo à adolescente, mãe de um bebê de 10 meses, cumprir a medida socioeducativa em liberdade assistida, em vez de ser privada da sua liberdade². Além disso, o maior impacto trazido por este marco legal, sem dúvidas, foi o habeas corpus coletivo nº 143.641. Com essa decisão, o STF determinou que as adolescentes privadas de liberdade provisoriamente que sejam gestantes, lactantes ou mães de crianças com até 12 anos ou responsáveis por pessoas com deficiência têm o direito de aguardar o julgamento dos seus processos em casa.
Ainda, de acordo com levantamento realizado a partir de informações obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) pelo projeto Justiça Juvenil do Instituto Alana, até setembro de 2020, 46 adolescentes gestantes, lactantes e mães, tiveram a sua liberdade concedida com fundamentação na decisão do STF neste HC. Enquanto o Marco Legal da Primeira Infância completa cinco anos, a decisão proferida no HC 143.641 completa três anos. É importante reconhecer e cobrar o papel do sistema de justiça como um ator relevante para romper a negligência presente na execução das políticas públicas voltadas à infância e à adolescência. Em setembro de 2020, porém, segundo o mesmo levantamento realizado pelo projeto Justiça Juvenil, havia mais de 100 adolescentes gestantes, lactantes ou mães de crianças pequenas inseridas no sistema socioeducativo.
A gravidez na adolescência por si só é um obstáculo que precisa ser enfrentado. A gravidez na adolescência em grades e celas é uma violência ainda mais grave e incessantemente é preciso afirmar que essa situação atinge meninas e seus filhos e filhas, em sua maioria pobres, negras e periféricas. O Marco Legal da Primeira Infância e as decisões do STJ e do STF que reconhecem o direito de meninas aguardarem o seu julgamento em casa com seus bebês são fundamentais para concretizar a prioridade absoluta exigida na análise desses casos.
Entre avanços e desafios, porém, ainda restam perguntas para serem respondidas e dados para serem produzidos, dentre eles, por quais motivos o Poder Judiciário tem negado a concessão deste direito? Após o julgamento do processo que resulta na responsabilização pela prática de ato infracional por meio da internação, para onde vão as crianças, filhas de adolescentes inseridas no sistema socioeducativo, quando não há contato com a família? Como se dá o encaminhamento à rede de proteção e cuidado da adolescente gestante ou mãe que deve aguardar seu julgamento em casa? Em quais condições vivem as crianças e gestantes inseridas no sistema socioeducativo? Respostas a esses questionamentos são fundamentais para garantir a implementação do Marco Legal da Primeira Infância e para que esse dispositivo possa ser, de fato, uma ferramenta de transformação da realidade e da vida dessas crianças e adolescentes, ambas sujeitas de direitos de maneira absolutamente prioritária .
¹ hooks, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Editora Elefante, 1ª ed., 2021, p. 62.
² HC 351732, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julg. 24.05.2016.
*Letícia Carvalho é bacharel em Direito e assistente jurídica no projeto Justiça Juvenil do Instituto Alana.
Mayara Silva de Souza é advogada e responsável pelo projeto Justiça Juvenil do Instituto Alana.