Garantir com prioridade absoluta os direitos de adolescentes em atendimento socioeducativo pressupõe um olhar cuidadoso que não pode se ausentar de analisar as fragilidades, os riscos e os prejuízos que as audiências por videoconferência causam no devido processo legal
Por Letícia Carvalho e Mayara Silva*
Mais de 18 mil adolescentes estão em situação de privação de liberdade no Brasil e, desde o início da pandemia, debater, conhecer e proteger o sistema socioeducativo tem se feito ainda mais necessário e urgente. Uma responsabilidade especialmente dos órgãos e instituições que têm o dever de garantir a manutenção dos princípios e objetivos do atendimento socioeducativo previstos na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, com a ampla participação dos que operam, pesquisam e estão expostos aos efeitos da apuração, aplicação e execução das medidas socioeducativas.
No Brasil, todas as audiências que envolvem crianças e adolescentes devem ser realizadas de maneira presencial. O que não é por acaso. A intervenção judicial pode ser uma experiência absolutamente traumática na vida de qualquer pessoa, principalmente daquelas que se encontram em peculiar estágio de desenvolvimento e devem ter seus interesses e direitos assegurados de maneira prioritária. Portanto, o contato de crianças e adolescentes com o sistema de justiça deve ocorrer de maneira excepcional, e quando necessária é preciso que seja de maneira sensível, justa, amigável e acessível tão quanto possível.
Por isso, quando realizadas audiências por via digital, em videoconferências, torna-se ainda mais difícil assegurar esses cuidados e adotar um postura humanizada que apenas o ‘olho-no-olho’ pode proporcionar. Daí a inexistência da previsão de audiências virtuais no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente, e em legislações especiais, como na Lei Federal nº 12.594 de 2012, não se tratando de uma lacuna legislativa, mas sim da devida aplicação da proteção especial aos direitos de adolescentes ante as vulnerabilidades, fragilidades e riscos da videoconferência.
Diante do atual contexto de crise sanitária, em que distanciamento físico, isolamento social, prevenção e proteção são palavras de ordem e de manutenção da vida, a legislação e os princípios se chocam com a realidade e criam uma ampla contradição: de um lado, a defesa pela realização de audiências por meio de videoconferência, ou presenciais respeitadas todas as normas de segurança sanitária; de outro a defesa pela suspensão das audiências e, não sendo possível, a realização presencial respeitadas todas as normas de segurança sanitária. O ponto comum é: precisamos respeitar todas as normas de segurança sanitária para proteger adolescentes, famílias e profissionais do sistema de justiça do contágio do vírus, e assegurar a absoluta prioridade dos direitos de adolescentes.
Em que pese a redução de deslocamento e prevenção do contágio que a videoconferência proporciona, quem critica a realização das audiências de maneira virtual destaca regras e princípios constitucionais, bem como o processo de desumanização promovido pelo ambiente virtual em um momento extremamente delicado e decisivo na vida de adolescentes, além da fragilidade da proteção à privacidade e da dificuldade de participação das famílias, que necessitarão de aparelhos e internet com conexão estável – considere-se que 81 % das famílias desses adolescentes não têm renda ou têm renda de apenas um salário mínimo.
Apesar dessas controvérsias, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou a realização de audiências por videoconferência na Justiça Juvenil, como medida exclusiva enquanto durar a pandemia de Covid-19. Contra esta regulamentação, mais de 80 organizações da sociedade civil divulgaram uma nota pública apontando as violações promovidas pela videoconferência no sistema socioeducativo.
Vale destacar que cada estado vive uma realidade distinta, inclusive em relação a pandemia. Por isso, onde há retomada de atividades, é importante que estas audiências ocorram de maneira presencial em cumprimento das normas estabelecidas. Ainda, posto que as audiências podem ser suspensas por até dois anos, na impossibilidade da realização presencial, a suspensão não traria prejuízo algum para nenhuma das partes. O verdadeiro prejuízo será a aplicação de medida socioeducativa em meio a pandemia.
É necessária a plena observação do artigo 227 da Constituição Federal, que compartilha a proteção e garantia dos direitos de crianças e adolescentes entre as famílias, a sociedade e o Estado, e do parágrafo terceiro, incisos IV e V, que assegura a proteção especial pela garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado e a obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade.
Garantir com prioridade absoluta os direitos de adolescentes em atendimento socioeducativo, bem como proteger profissionais, familiares, assim como todos atores e atrizes do sistema de justiça, pressupõe um olhar cuidadoso que não pode se ausentar de analisar as fragilidades, riscos e prejuízos que as audiências por videoconferência causam no devido processo legal. O que está em jogo, para além de um procedimento tecnológico, é a vida – o agora e o futuro – de adolescentes, que têm direito a um tratamento justo, sensível, acessível, amigável e, sobretudo, humanizado.
*Letícia Carvalho é estudante de Direito e estagiária no projeto Justiça Juvenil do programa Prioridade Absoluta.
Mayara Silva de Souza é advogada e responsável pelo projeto Justiça Juvenil do programa Prioridade Absoluta.