Por Laura Gonzaga *
Em 2017, o Unicef lançou o estudo Um rosto familiar: Violência na vida das crianças. No ritmo atual, quase 2 milhões de crianças e adolescentes serão mortas por um ato de violência até o ano 2030. Por tudo isso, conhecer as dimensões do problema é fundamental para prevenir e, finalmente, erradicar a violência contra essa população. Sabemos que essa forma de violência é muito frequente e altamente subnotificada, e que as crianças e adolescentes, sobreviventes e vítimas, tendem a ser silenciados.
O estudo apresentou novos dados relativos ao desenvolvimento neurológico das crianças: a exposição a experiências traumáticas e violentas pode produzir estresse tóxico, levando os mecanismos do corpo que respondem ao estresse a ficar constantemente ativados. A estrutura e o funcionamento do cérebro da criança, principalmente em seus primeiros anos de vida, pode ser alterada e comprometida pela exposição frequente ao trauma. Além de nutrição, afeto e estímulo, demonstra o estudo, o desenvolvimento cognitivo e neurológico das crianças exige proteção contra violências.
Como garantir essa proteção? Uma parte do problema é que a violência contra crianças e adolescentes tende a ser vista como inevitável ou mesmo necessária, o que contribui para o círculo vicioso de silêncio e perpetuação do abuso. É importante lembrar que todas as crianças e adolescentes têm direito a proteção, não importa quem seja o seu agressor — pais, família, professores, amigos ou desconhecidos — e que toda forma de violência, independentemente de sua natureza ou severidade, causa danos ao desenvolvimento e à autoestima, muito mais prejudiciais nessa fase fundamental de formação.
Um rosto familiar traz dados assustadores sobre o estado da violência contra crianças e adolescentes no mundo — e sobre o lugar do Brasil no cenário mundial. O estudo apresenta novas análises estatísticas quanto a quatro formas específicas de violência: violência disciplinar e exposição à violência doméstica durante a primeira infância; violência na escola, incluindo bullying; mortes violentas na adolescência; e violência sexual. Os dados revelam que crianças e adolescentes passam por situações de violência em todas as fases de desenvolvimento e em diversas situações e lugares, frequentemente por parte de pessoas conhecidas em quem confiam e que fazem parte de sua rotina. Para ilustrar esse cenário, destacamos alguns dos dados mais importantes trazidos à tona pelo estudo.
Nas idades de 2 a 4 anos, três em cada quatro crianças sofrem castigos violentos sob a justificativa da disciplina: são 300 milhões de crianças em todo o mundo. Entre os 12 e 23 meses de idade, seis em cada dez sofrem esse tipo de castigo, sendo que quase a metade sofre castigo físico. Mais de um quarto dos cuidadores afirmam que o castigo físico é necessário para criar e educar uma criança: 1,5 bilhão de adultos pelo mundo, tratando a violência como apenas mais uma ferramenta educacional.
A violência em torno das crianças também causa danos irreparáveis, e está frequentemente associada à violência contra a mulher: uma em cada quatro crianças menores de 5 anos vive com uma mãe que sofre violência doméstica.
Os dados acerca de violência sexual retratam um cenário de silêncio e culpabilização: apenas 1% das meninas que sofreram violência sexual procuraram ajuda de profissionais. Entre as 15 milhões de meninas de 15 a 19 anos que sofreram esse tipo de violência, 90%, em média, relatam que a primeira violação foi perpetrada por alguém próximo ou conhecido. O estudo aponta, ainda, uma grande lacuna de informação quanto à violência sexual sofrida por meninos.
Os pontos de destaque do Brasil no estudo são trágicos. Menos de 10% dos adolescentes do mundo vivem na América Latina; no entanto, quase metade dos homicídios de adolescentes acontecem por aqui. Essa é a única região do mundo que apresentou aumento nas taxas de homicídio da população de 10 a 19 anos, e o Brasil contribui enormemente para esse ranking: somos o quinto país com mais homicídios de adolescentes, com 59 assassinatos para cada 100 mil — atrás somente de Venezuela, Honduras, Colômbia e El Salvador. Vemos também o impacto do racismo estrutural nas estatísticas: o número de adolescentes negros brasileiros assassinados é quase três vezes maior do que o de adolescentes brancos.
No quesito bullying, 43% das crianças brasileiras do 6º ano (por volta de 11 anos) relataram ter sido vítimas nos últimos meses, tendo sofrido insultos, ameaças e agressões físicas. Os dados colocam o Brasil entre os países com as maiores estatísticas de bullying.
Em uma nota positiva, o Brasil se destaca na vanguarda da legislação relativa à violência contra crianças e adolescentes. Somente 9% das crianças do mundo contam com plena proteção legal contra castigos corporais em seus países — e nossas crianças fazem parte dessa estatística desde 2014, ano de aprovação da Lei Menino Bernardo.
Ainda que o conhecimento e a conscientização sejam valiosos, são também apenas um primeiro passo. Por isso, o estudo aponta alguns passos concretos que as nações precisam tomar de agora em diante: apoiar planos e ações nacionais coordenadas para enfrentar a violência contra crianças e adolescentes; fortalecer os marcos legais e políticos; implementar políticas para superar a violência e melhorar os serviços; e mudar os padrões culturais e sociais que perpetuam a violência.
Esses passos são essenciais e exigem engajamento e o exercício da cidadania, pressão e mobilização política, e a vontade de proteger nossas crianças contra todas as formas de violência. Sabemos que lugar de criança é na família, na escola e na comunidade; como o estudo do Unicef demonstra, as crianças e adolescentes frequentemente vivenciam violência exatamente nesses lugares a que deveriam pertencer. Hoje, o mundo pode dizer que enxerga esse cenário: não existem mais desculpas para a omissão.
Laura Gonzaga é estudante de Direito e faz parte da equipe do programa Prioridade Absoluta, do Alana.