Aconteceu, nos dias 19 e 20 de fevereiro, a primeira assembleia do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) de 2020. Os encontros estavam suspensos desde o decreto presidencial, publicado em setembro de 2019, que alterou profundamente o funcionamento e a estrutura do Conselho.
Em dezembro, o Ministro Luís Roberto Barroso, do STF, proferiu decisão liminar que suspendeu parte do decreto, prevendo, dentre outras coisas, a volta do mandato para conselheiros eleitos para o biênio 2019-2020, que haviam sido destituídos; a realização das reuniões mensais presenciais, em vez de reuniões trimestrais por videoconferência; e a eleição do presidente do Conselho pelos conselheiros (com o decreto, a escolha passava a ser da Presidência da República).
Durante a reunião, debateu-se a PEC que propõe a redução da idade mínima para o trabalho infantil; além da necessidade da garantia recursos para o adequado funcionamento do Conselho e do Fundo Nacional da Criança e do Adolescente, entre outros.
No segundo dia, a representante do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Iolete Ribeiro da Silva, foi eleita como Presidente do Conanda. O Prioridade Absoluta conversou com a psicóloga tocantinense que também é diretora da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas, para falar, dentre outros, sobre os desafios prioritários para o Conselho no atual cenário da infância e adolescência brasileiras. Confira:
Prioridade Absoluta: Pode nos contar um pouco sua trajetória na defesa dos direitos de crianças e adolescentes?
Iolete Ribeiro: A minha trajetória começa em 1992, quando eu morava no interior do Tocantins, em Porto Nacional. Nós realizamos uma mobilização para a criação do primeiro Conselho Municipal de Direitos da Crianças e do Adolescente (CMDCA) da cidade e eu fui a primeira presidenta. Desde então, eu continuei a militância na área da infância e adolescência, tanto participando de movimentos sociais, quanto na minha atuação profissional como psicóloga, pesquisadora e professora universitária. Trabalho na graduação e mestrado em psicologia, no mestrado e doutorado em educação e, nesses espaços, meu tema sempre foi infância e adolescência. Já participei do secretariado nacional do Fórum Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual, da Comissão Intersetorial de Enfrentamento à Violência Sexual. Sempre estive nesses espaços entendendo que a visão da psicologia pode contribuir para compreender melhor a infância e a adolescência e os caminhos para a concretização dos direitos dessa população.
PA: Qual a importância de ter uma mulher negra como presidente do Conanda?
IR: A importância de que mulheres e mulheres negras ocupem espaços de gestão, como o do Conanda, é, primeiro, em função da representatividade. Se estamos na sociedade, também temos de ocupar esses espaços. Segundo, pela sensibilidade em relação a temas que dizem respeito a essa interseccionalidade de gênero e raça que muitas vezes fica invisibilizada quando não se tem um olhar de atenção específico. Por exemplo, no país é difícil ser mulher, ser menina, é difícil ser mulher negra: são condições que nos expõem mais à violência, à opressão, à processos de exclusão. As políticas públicas precisam se dar conta disso, precisam de mecanismos que façam esses enfrentamentos e promovam a garantia de direitos das mulheres, das mulheres negras, das adolescentes negras.
PA: Como você enxerga as investidas do atual governo contra o Conanda?
IR: A retomada do Conanda se deu a partir de uma liminar no STF. Isso demonstra que não há uma disposição do governo de respeitar a lei e muito menos de investir nos espaços democráticos de construção de políticas públicas. Todo o esforço do governo tem sido no desmonte desses espaços. A retomada do funcionamento do Conanda significa estar em um espaço de luta, de construção coletiva, de articulação de um coletivo que é maior do que o próprio Conselho para alcançar algumas vitórias, em especial para que consigamos realizar a Conferência Nacional em novembro.
E também vai ser um espaço em que teremos que trabalhar muito com dados, porque não se faz política pública no vácuo. Precisamos trabalhar com as informações para fazer o enfrentamento nesse espaço de construção em conjunto com o governo. O movimento que o governo faz é sempre de negar, de dizer que a situação não é verdadeira ou mesmo que não é de sua responsabilidade prover serviços que garantam direitos. Há sempre um movimento de jogar para as pessoas, para as famílias e de desresponsabilização do governo, então acho que esse é um enfrentamento grande que temos pela frente.
PA: Qual a importância da mobilização da sociedade civil em defesa do Conselho?
IR: É muito importante. A campanha #EscuteEsseConselho é fundamental para tornar conhecido o que é o Conanda, qual sua relevância e como contribui para a construção da Política Nacional de Infância e Adolescência. Também porque é a partir dos diferentes olhares das instituições da sociedade civil, cada uma com a sua expertise, que a gente pode construir propostas mais consistentes, levando em conta as diferentes realidades, já que o nosso país é enorme e tem uma diversidade grande de condições de vida. Ser criança no Norte e no Nordeste é diferente de ser criança no Sul e no Sudeste, então a gente precisa ter todas as informações e olhares sobre essa diversidade. E também construir redes para o enfrentamento e a incidência política.
PA: Quais os desafios prioritários para o Conanda no cenário atual da infância e adolescência brasileiras?
IR: Os desafios prioritários neste momento se referem em especial à realização da Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e também na incidência em pautas urgentes. Nós temos várias situações já identificadas no planejamento estratégico, que o Conselho realizou no ano passado e que ficaram paralisadas com esse não funcionamento das reuniões, que precisamos retomar. São inúmeras pautas, mas a gente pode apontar: os enfrentamentos no espaço legislativo a leis e propostas de leis que retiram direitos no campo da proteção ao trabalho infantil; o enfrentamento à violência sexual; as discussões sobre o sistema socioeducativo e todo o acirramento de um contexto de violação de direitos no cumprimento das medidas socioeducativas, com tantas denúncias de torturas e mortes nas instituições de internação. Nós também temos desafios relacionados à garantia da participação de crianças e adolescentes, porque é essencial e imprescindível que a voz deles seja considerada nesses espaços de construção de políticas para a infância e adolescência. Então, nós temos o desafio de tornar isso realidade ou, pelo menos, nesse momento, colocar isso na pauta da discussão dentro e fora do Conanda.