Todas as crianças e adolescentes são absoluta prioridade no país, e devem ter seus direitos assegurados e melhor interesse garantido sempre. Isso não é diferente para crianças e adolescentes indígenas. Para conversar sobre a educação dentro das comunidades indígenas, especialmente no período de pandemia, sobre a relação das crianças com a natureza e a prioridade absoluta de crianças e adolescentes indígenas, conversamos com Cristine Takuá, educadora indígena, filósofa e artesã, que vive na terra indígena Ribeirão Silveira, no litoral norte de São Paulo.
A educação escolar indígena, a partir da Constituição de 1988, conquistou direitos específicos para funcionamento como escola diferenciada. Isso significa a possibilidade de ter calendários e currículos específicos, adaptados à realidade local, por exemplo. Além disso, para que as escolas não-indígenas tenham um currículo que valorize a diversidade de povos, culturas e suas cosmovisões, a Lei n º11.645, de 2008, estabelece a inclusão obrigatória da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” no currículo oficial da rede de ensino. A lei é complementar à Lei 10.639, de 2003, que inclui a história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares.
Para Cristine, ainda enfrentamos sérios desafios para efetivar o acesso à educação de qualidade para todas as crianças e adolescentes, de modo que se atenda às especificidades de cada região e cultura. A educadora também aponta que a pandemia escancarou ainda mais as desigualdades no acesso a esse direito no país. Um dos maiores obstáculos para a educação das crianças dentro das comunidades indígenas, conta, foi o acesso à internet, considerando que apenas a minoria dos estudantes têm acesso à rede e a equipamentos tecnológicos.
“O acesso à internet deveria ser garantido para todo o país, independente se você está no quilombo, na aldeia, em uma comunidade indígena, na favela, na periferia ou nas grandes cidades. O acesso à internet e à informação, no Brasil, é muito limitado e elitista. Isso ficou muito evidente neste período de pandemia, nas dificuldades encontradas para executar atividades com o uso dessas tecnologias”, aponta.
Ao Prioridade Absoluta, a educadora também falou sobre o Tekó Porã, o conceito filosófico, político e cultural Guarani sobre o bem viver, em equilíbrio com a natureza e respeito a todos os seres vivos; e sobre como a relação das crianças com a natureza tem sido afetada por interferências humanas no ambiente e pela crise climática. Para ela, para que a prioridade absoluta seja efetivada de fato, precisamos, dentre outras coisas, de mais políticas públicas que incentivem a demarcação dos territórios indígenas: “a nossa luta pelo reconhecimento do território é justamente para que as nossas crianças possam continuar vivendo, brincando, aprendendo com a natureza”, conta.
Como você avalia a educação brasileira hoje?
Cristine Takuá: Eu penso que a educação brasileira hoje enfrenta sérios desafios. Na verdade, não somente hoje, há um tempo eu já venho observando o quanto a educação vem sendo limitada no seu compromisso com o próprio educar. Porque quando eu observo o currículo das escolas, como educadora e como mãe, eu vejo que muitas vezes a escola se propõe a ensinar conteúdos que são vazios de sentido para a vida que, principalmente nas cidades, gera competitividade, que coloca às vezes como lema “ser alguém na vida”, que significa acessar o mercado de trabalho e ganhar dinheiro. Já a educação escolar indígena, não prioriza esse acesso ao mercado de trabalho, muito menos a competição, mas uma educação que fortaleça os nossos territórios, que coloque em primeiro lugar o respeito ao próximo, não só aos humanos, mas a todos os seres. O respeito com a floresta, com o rio, com as árvores, as abelhas, as formigas. Então, a educação brasileira tem deixado muito a desejar nesse sentido, porque ela não tem contribuído para formar cidadãos realmente conscientes, que respeitem a diversidade que existe em nosso país. Somos um país megadiverso, com mais de 300 povos, mais de 200 línguas sendo faladas e, mesmo hoje, ainda existe racismo e preconceito. E tudo isso me preocupa muito quando penso no futuro da educação brasileira. E agora com essa pandemia tudo se agravou de uma certa forma e as desigualdades ficaram ainda mais escancaradas.
Nós observamos que há muita desigualdade no acesso à educação. Há escolas que têm estrutura, não apenas tecnológica, mas organizacional, e outras que mal têm estrutura física para agrupar os alunos e oferecer o mínimo de espaço para as aulas. Há muita desigualdade no acesso e isso precisa ser repensado, principalmente pelos governantes. Se temos um Ministério da Educação e um governo que não estão preocupados com a diversidade que habita no nosso país, como vamos propor a resolução dessa desigualdade, do acesso a uma educação com qualidade e que realmente atenda a especificidade de cada região? Porque existem muitas especificidades: a educação quilombola, a educação indígena, a dos imigrantes… Muitas situações que merecem atenção e acesso adequados e de qualidade. Isso precisa ser muito bem pensado e discutido com as pessoas que estão à frente, com os governantes, para que proporcionem políticas públicas de acesso e de manutenção dessa educação, para que ela seja válida para todas as comunidades e todos os territórios.
Como ficou o acesso à educação das crianças indígenas durante a pandemia?
C.T: A pandemia de coronavírus trouxe ainda mais obstáculos para conseguir efetivar uma educação de qualidade, realmente válida para as nossas crianças dentro das comunidades indígenas. Tivemos essa indicação da educação à distância, mas é a minoria das crianças que têm acesso à internet, computador, celular, o que dificultou bastante. Eu penso, particularmente como educadora, que o acesso à internet deveria ser garantido para todo o país, independente se você está no quilombo, na aldeia, em uma comunidade indígena, na favela, na periferia ou nas grandes cidades. O acesso à internet e à informação, no Brasil, é muito limitado e elitista. Isso ficou muito evidente neste período de pandemia, nas dificuldades encontradas para executar atividades com o uso dessas tecnologias.
Por conta dessas dificuldades, começamos a repensar e propor outros meios de dar continuidade aos processos educativos, elaborando atividades para encaminhar para as crianças. Mas o principal foco foi fortalecer a educação do dia a dia, valorizando as atividades feitas com os pais, os roçados, a pescaria e a produção da arte indígena. Tudo é um incentivo para a transmissão dos saberes, que chamamos de educação tradicional. Isso nos trouxe grandes reflexões, inclusive sobre a criação de um currículo próprio, fortalecer o currículo das escolas indígenas e repensar quais são os caminhos e os objetivos da escola dentro das comunidades indígenas.
Com tudo que temos vivido durante a pandemia, quais aprendizados você acha que podemos tirar?
C.T: Temos vivido nos últimos tempos, mesmo antes da pandemia e agora com esse processo de isolamento, uma incerteza do futuro. Mesmo com a chegada das vacinas – aqui na minha terra indígena já fomos vacinado com a primeira dose – ainda temos uma incerteza, uma insegurança do que tudo isso vai nos trazer. E mesmo antes da pandemia, a vida no Brasil, não só nas terras indígenas, tem sido muito difícil, devido a esse governo, que desrespeita a diversidade que existe no país, desrespeita as florestas e os seres vivos como um todo. E o grande aprendizado que eu tenho tido dentro dessa grande resistência, dessa grande luta em que a cada dia temos de repensar e ter força para lidar com todas essas situações adversas, é conseguir cuidar das crianças. Ser uma educadora que consiga transmitir saberes para que as crianças se fortaleçam, continuem cuidando dos rios, da floresta, porque é a floresta viva que nos mantém felizes, com saúde, aptos para continuar essa vida de luta.
Você pode falar um pouco sobre o Teko Porã, sobre a relação das crianças indígenas com a natureza e como essa relação vem sendo afetada pelos impactos da crise climática?
C.T: Algumas pessoas traduzem o Tekó Porã como bem viver. É um conceito Guarani muito complexo porque é filosófico, político, social e cultural que reflete sobre a boa e a bela maneira de você ser e estar no território, o Tekoa. Então acreditamos que ele é uma prática, uma forma de viver a vida em equilíbrio, em respeito com a floresta e com todas as formas de vida, os seres vegetais, animais, minerais. Muitos outros povos também tem em suas línguas a tradução para esse conceito, essa forma de pensar o bem viver e esse modo de vida equilibrado. Para a nossa visão é isso, uma forma de pensar o território e a vida de uma forma equilibrada.
As crianças têm uma relação muito forte com a natureza, uma relação que é natural, que é do convívio. É a nossa forma de transmissão de conhecimento. Uma forma de educar as crianças, permitir que elas aprendam, é vivendo e deixar que tenham, no território, a possibilidade de brincar, viver e aprender até com os bichinhos, com a água. Isso as torna, de uma certa forma, fortes tanto na espiritualidade quanto na cultura. Só que, nos últimos tempos, há uma interferência muito grande das mudanças climáticas e outras interferências do homem sobre o território, que para nós é uma questão muito delicada. Há comunidades, hoje, em que o território foi muito reduzido, que têm grandes conflitos por causa do avanço do agronegócio. Também tem a questão da mineração que contaminou tantos rios, como nos parentes Krenak, que vivem à beira do Rio Doce que está totalmente contaminado. Então, as crianças não podem mais pescar, não podem mais se banhar no rio, e isso interfere em suas vidas de uma forma muito significativa. Outros parentes, como os Kayapó, sofrem também com a questão da mineração; os parentes Yanomami, todo o povo do Xingú, lida com a contaminação dos rios pelo agronegócio. São muitas situações que hoje temos assistido e, também, lutado para que os governantes respeitem e demarquem o território. A nossa luta pelo reconhecimento do território é justamente para que as nossas crianças possam continuar vivendo, brincando, aprendendo com os seres espírito da floresta. E, mais que isso, para que os próprios seres da floresta – a paca, a cutia, a lontra, as abelhas, as árvores – possam, também, continuar vivendo da forma como deve ser: a vida natural. Há uma mudança muito grande na forma como se vive, hoje, em algumas aldeias em comparação a como era por conta desses desequilíbrios, dessas interferências humanas no meio ambiente.
Como você avalia a prioridade absoluta das crianças e adolescentes indígenas? Você acredita que está sendo efetivada?
C.T: Eu vejo que têm muitas leis que não são respeitadas, como a própria Constituição Federal. Vemos que há muitos artigos importantes, mas se, de fato, pararmos para observar, eles não são cumpridos. Ainda hoje, existem muitas crianças sofrendo, que não têm o mínimo do básico para viver de uma forma tranquila, equilibrada. Para que a prioridade absoluta seja efetivada, acredito que tem de haver mais políticas públicas que incentivem a demarcação dos territórios indígenas, e a efetivação de uma educação que realmente seja diferenciada e respeite os princípios básicos do que entendemos como uma educação de qualidade. Somente assim vamos conseguir realmente garantir a vida e o bem viver.