Por Marina Pita e Pedro Hartung*
O segundo episódio da 4ª temporada da série Black Mirror, Arkangel, tem assustado muita gente. A tecnologia avançada aplicada à vida das crianças e famílias fez com que muita gente temesse o futuro. O que muitos não se dão conta ao ver o episódio é que não se trata de um futuro distópico, mas de um presente já pertubador, em que crianças não são vigiadas somente por seus familiares, mas também pelas próprias empresas de tecnologia que coletam, tratam e comercializam as informações e dados pessoais de crianças e adolescentes.
No episódio Arkangel, uma mãe implanta um chip no cérebro de sua filha, de forma que pode acessar sua localização, o que a pequena está vendo e as mudanças bioquímicas pelas quais passa o corpo da criança. Diante disso, como muitos já comentaram em textos na Internet, vive uma série de dilemas com relação à educação, ao monitoramento constante e aos limites à interferência parental na intimidade e privacidade da sua filha.
Estes são questões que as famílias já começam a enfrentar hoje. Nas devidas proporções, a solução Arkangel é bem semelhante aos smartwatches que, conectados, coletam localização e permitem acionar o microfone remotamente. Dispositivos deste tipo podem facilmente também coletar batimentos cardíacos, analisá-los e lançar alertas aos pais.
Não à toa, a Alemanha baniu completamente a venda dos relógios e recomendou a destruição dos já comprados. A mesma recomendação estatal foi dada com relação à boneca Cayla, um exemplo dos atuais e cada vez mais populares brinquedos conectados.
Nesta mesma tendência, a Hello Barbie, boneca conectada e “inteligente” da Mattel, coleta áudios da interação do dispositivo com a criança e envia para os pais, com a possibilidade de estes, a um clique, os divulgarem nas redes sociais. Muitas vezes, na melhor das intenções, mães e pais são persuadidos pelo discursos de segurança e inovação propagados pelas empresas e suas publicidades — criados sem a devida reflexão e aprofundamento sobre os impactos no desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Por meio da adoção destes dispositivos, momentos de íntima e necessária privacidade da criança — como no ato de brincar, por meio do qual ela desenvolve habilidades e elabora constantemente suas visões de mundo e experiências — passam a ser devassados não apenas por pais e mães, mas especialmente, e com consequências ainda mais graves, por data brokers, verdadeiros mercadores de informação alheia.
O episódio da série não explora o uso que a empresa Arkangel poderia fazer dos dados coletados das crianças com implantes, mas é este o modelo de negócio já vigente de inúmeros aplicativos e serviços digitais que, igualmente ao da série, são gratuitos ou muito baratos, pois extraem o lucro da venda desses dados. Não à toa, o avô de Sara, a menina com o chip implantado, exclama: ah, foi de graça?! Em tom irônico.
Como já diz o ditado, se você não está pagando, você é o produto. Entretanto, o que acontece quando a exploração dos dados pessoais ocorre desde a mais tenra infância? Quais os impactos da coleta, armazenamento e tratamento por empresas e não apenas em momentos de lazer, mas também no sistema educacional pelas edutechs (empresas de desenvolvimento de soluções tecnológicas para a área educacional) e para usos futuros de classificação e avaliação de desempenho, habilidades e fragilidades de pessoas em desenvolvimento?
No episódio da série, é a mãe que vê, escuta tudo e toma decisões pela filha. Em nossos dias, quem tem feito isso de maneira massiva e não transparente são empresas, que registram e manipulam todos os passos, falas,sonhos e desejos mais íntimos de indivíduos ainda em formação e desenvolvimento.
E como, infelizmente, o episódio da série parece sugerir, não podemos culpabilizar somente mães e pais nesta desafiadora tarefa de mediar o uso de novas tecnologias com suas filhas e filhos. As empresas tem igualmente responsabilidade na proteção e promoção dos direitos de crianças e adolescente no desenvolvimento e oferta de produtos e serviços, conforme determina o art. 227 da Constituição Federal.
Proteger os dados de crianças e adolescentes é permitir que esses indivíduos exerçam o direito ao livre desenvolvimento de suas personalidades, sem a constante ameaça de rastros digitais coletados e comercializados desde o berço até o túmulo.
Pedro Hartung é advogado e coordenador do Prioridade Absoluta, iniciativa do Alana.
Marina Pita é jornalista, pesquisadora em privacidade e consultora do Criança e Consumo, também do Alana.