O direcionamento de comunicação mercadológica ao público infantil é incompatível com o dever constitucional de toda a sociedade, inclusive de empresas, de proteger as crianças com absoluta prioridade. A lucratividade e os interesses comerciais não podem se sobrepor à garantia de direitos, especialmente na primeira infância
Por Marina Meira e Thaís Rugolo*
O Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016), em consonância com a prioridade absoluta conferida pela Constituição Federal à proteção e promoção dos direitos da criança, estabelece princípios e diretrizes para a criação de políticas públicas voltadas à primeira infância, fortalecendo a figura da criança como sujeito de direitos que, em razão da peculiar fase de desenvolvimento cognitivo e psicossocial que atravessa, merece especial atenção do Estado, de sua família e de toda a sociedade.
Em seu quinto artigo, o Marco Legal aponta que a criança deve ser protegida de toda forma de violência e pressão consumista e endossa a importância de serem adotadas medidas que evitem sua exposição precoce à comunicação mercadológica.
Ao fazê-lo, a lei ecoa em consonância com o arcabouço constitucional e legal que protege os direitos da infância de forma ampla, inclusive frente a interesses de cunho privado e comercial, e reforça o objetivo de persecução por uma sociedade mais ética e sustentável, desde os primeiros anos de vida de seus indivíduos.
A pressão consumista pode ser explicada como as ações do mercado de consumo que se direcionam para as crianças, de forma a persuadi-las ao desejo de consumir determinado produto ou serviço. Em paralelo, a comunicação mercadológica é definida, de acordo com a Resolução nº 163/2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda, como “toda e qualquer atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, para a divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas, independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado”.
Cabe pontuar que, desde 1990, a legislação brasileira rechaça a criança como objeto da pressão consumista e da comunicação mercadológica, na medida em que o Código de Defesa do Consumidor proíbe toda publicidade que não seja identificada como tal e toda forma de publicidade abusiva, a qual conceitua, dentre outras formas, como aquela que “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”.
Segundo apontam uma série de estudos, crianças de zero a seis anos não conseguem diferenciar publicidade de conteúdo de entretenimento. Justamente, crianças que atravessam a primeira infância são seres hipervulneráveis em relação à comunicação mercadológica, pois absorvem o conteúdo comercial sem que possam compreender criticamente seu intuito persuasivo, o que as torna alta e silenciosamente influenciáveis por esse tipo de estratégia do mercado.
A ilegalidade da prática, reforçada de forma tão importante pelas disposições do Marco Legal da Primeira Infância, relaciona-se intrinsecamente com o quão prejudicial ela é ao desenvolvimento infantil. Se a primeira infância é considerada uma das fases mais importantes do desenvolvimento humano, com repercussões por toda a vida e decisiva na formação das habilidades cognitivas, sócio-emocionais e hábitos comportamentais, é essencial também a proteção desse público contra as pressões consumistas exercidas pela publicidade infantil.
Dentre as sérias consequências da comunicação mercadológica e das pressões consumistas dirigidas a crianças, destaca-se a conformação de tendências e hábitos alimentares não saudáveis que contribuem para o aumento nas taxas de obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis, como o diabetes, decorrentes da publicidade de produtos alimentícios não saudáveis.
Além da saúde, a comunicação mercadológica se relaciona com o impulsionamento de processos de adultização e erotização precoces, bem como de reforço a estereótipos de gênero e raça – frequentemente, o mercado cria nichos específicos e divergentes de produtos que pretende vender a meninas e a meninos; e, por vezes, não só ignora a cultura da população negra, mas reforça o preconceito com relação às suas manifestações -, desestimulando a criatividade infantil e evidenciando e aprofundando padrões de desigualdades estruturais que permeiam a sociedade. Não só, mas a indução a padrões consumistas também é propagadora de hábitos ambientalmente insustentáveis.
Mas, então, sendo a exposição de crianças à comunicação mercadológica e a pressões consumistas tão prejudicial a seu desenvolvimento, e diretamente rechaçada pelas leis e pelos tribunais brasileiros, como se explica a perpetuação de tais práticas, que não só seguem sendo comuns, mas assumem formatos cada vez mais refinados e pouco transparentes, atingindo a criança em ambientes que vão desde a TV, as escolas e os pontos de venda em lojas, até o ambiente digital?
A resposta, de início, resvala na constatação de que a prática é lucrativa ao mercado, que dela se vale em uma tentativa de fidelizar a criança a hábitos de consumo desenfreado e ao consumo específico de determinadas marcas, produtos e serviços desde os primeiros anos de vida.
Ademais, pesquisas indicam que crianças possuem largo poder de influência sobre as decisões de compra de suas mães e pais – motivo pelo qual, inclusive, não raro encontra-se peças publicitárias direcionadas a crianças que não veiculam produtos tipicamente infantis.
A lucratividade e os interesses comerciais, porém, não podem se sobrepor à garantia dos direitos de qualquer criança, especialmente daquelas que atravessam a primeira infância. O direcionamento de comunicação mercadológica ao público infantil e sua exposição a pressões consumistas são incompatíveis com o dever constitucional de toda a sociedade, inclusive de empresas, de proteção da infância.
Chama-se, assim, todos os atores a encararem e abraçarem esses temas com a devida importância que eles merecem, não só pelo dever de cumprimento a leis tão essenciais como o Marco Legal da Primeira Infância, mas pela construção de uma sociedade mais ética e sustentável.
*Marina Meira é advogada do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana
Thais Rugolo é estudante de direito e estagiária do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana