Para a efetivação dos direitos de crianças e adolescentes, desde a primeira infância, é fundamental a constituição de um ensino jurídico voltado para a compreensão de normas específicas de proteção aos direitos dessa população
Por Letícia Claro e Pedro Mendes*
Pensar um sistema de justiça que garanta os direitos de todas as crianças e adolescentes desde o começo da vida é uma necessidade urgente, imposta pelo dever compartilhado entre família, Estado e sociedade de assegurar os direitos desse grupo com absoluta prioridade, como determina o artigo 227 da Constituição Federal.
Nesse contexto, em 2016, foi aprovado o Marco Legal da Primeira Infância (MLPI) – Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016 -, dispositivo legal que define políticas públicas para com crianças de até 6 anos de idade e suas famílias, estabelecendo um conjunto de ações voltadas à promoção do desenvolvimento infantil e apoio à parentalidade positiva a partir do começo da vida, fase decisiva no desenvolvimento integral do ser humano. Como toda legislação recente, sua efetivação depende de produções acadêmicas e doutrinárias, pesquisas empíricas, inserção no ensino jurídico, operacionalização no dia a dia e decisões do judiciário que possam oferecer um entendimento amplo sobre seu alcance e sua aplicação.
Desde a promulgação, o Marco Legal da Primeira Infância acumula inúmeros avanços e conquistas importantes, como o julgamento do Habeas Corpus Coletivo 143.641, em 2017, no qual o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria dos votos, com base em previsão normativa do Marco, que mulheres presas preventivamente e adolescentes internadas gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência cumpram prisão domiciliar. Além dessa decisão paradigmática, a legislação promoveu outras conquistas que prevêem ações de apoio às famílias com crianças nesta faixa etária, e a ampliação da licença-maternidade, de quatro para seis meses, e licença-paternidade, de cinco para 20 dias para aqueles que trabalham em empresas que aderem ao programa Empresa Cidadã, reconhecendo a importância da família no desenvolvimento das crianças.
É, justamente, procurando formas de implementar o texto normativo, que o MLPI prevê a promoção de políticas de capacitação dos profissionais que lidam com o público infantil, reconhecendo-os como atores fundamentais para a efetivação dos direitos da criança, pois, com uma formação adequada, contribuirão de forma ainda mais efetiva para o pleno desenvolvimento infantil.
Visando o preparo dos operadores do direito, tanto o Marco quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dispõem acerca da articulação com instituições de formação profissional para que os cursos contemplem conteúdos sobre a primeira infância, assegurando, assim, profissionais capacitados e qualificados, com base nas características e necessidades dessa faixa-etária.
No entanto, essa realidade parece longe de se concretizar. Considerando os dados sobre o ensino jurídico do país, em 2016, das 20 faculdades com maior aprovação no exame da Ordem dos Advogados do Brasil, só metade tinha matérias relacionadas ao tema.A repercussão negativa da ausência de recursos pedagógicos de proteção da primeira infância no ensino jurídico pode implicar em diversas violações de direitos, como se verifica no caso de revitimização de crianças em processos judiciais que tratam de violência sexual, nos quais a falta de preparo de para lidar de forma adequada com indivíduos nessa faixa-etária pode ocasionar traumas que reproduzem a violência.
O problema é estrutural e se estende também à disponibilidade quantitativa de serviços jurídicos, sendo que apenas 12,2% das Varas da Infância e Juventude do país são exclusivas para julgar casos envolvendo crianças e adolescentes, circunstância que acaba por ocasionar a precariedade do acesso à justiça dessa população, privando-as, por exemplo, da resolução de conflitos familiares que envolvem o poder parental ou da proteção de sua segurança. Um cenário completamente contrário à regra da prioridade absoluta, com efeitos ainda mais graves na primeira infância, haja visto que essa é uma etapa essencial para o desenvolvimento de todos os indivíduos. Para concretizar a proteção da primeira infância, é, portanto, imprescindível que seja constituído um ensino jurídico voltado para a compreensão de normas específicas de proteção dos direitos dessa população.
O percurso para atingir a destinação adequada de recursos pelo Poder Público, a adaptação do sistema de justiça como um todo e o compromisso dos operadores do direito com a garantia dos direitos de crianças na primeira infância com absoluta prioridade pode ser facilitado se o ensino jurídico passar a pautar essas demandas em sua estrutura. Garantir que os cursos de Direito debrucem-se também sobre os direitos dessa população possibilita que os profissionais da área, a partir do início de sua formação, obtenham instrumentos necessários para garantir os direitos de crianças e adolescentes, desde o começo de suas vidas.
*Letícia Claro e Pedro Mendes são estudantes de direito e estagiários do Instituto Alana