Mais do que nunca, nesse momento tão desafiador que estamos vivenciando, faz-se necessário iluminar a imprescindibilidade de se garantir os direitos das crianças e dos adolescentes no país, com prioridade absoluta e, em especial, garantir-se um bom começo da vida, com condições adequadas desde a primeira infância
Isabella Henriques*
No último dia 22 de outubro aconteceu o lançamento do “Plano Nacional pela Primeira Infância — revisto e atualizado”. O Plano é fruto da atuação da Rede Nacional Primeira Infância, a RNPI – que tem hoje a organização da sociedade civil, Andi Comunicação e Direitos, à frente da sua gestão. A RNPI é um exemplo da força da construção coletiva e da atuação em rede, que inclui diversas organizações da sociedade civil, além de outros agentes, de governo, da iniciativa privada e de organismos multilaterais, que atuam de forma coletiva e solidária.
A versão revista e atualizada chegou para substituir o Plano Nacional pela Primeira Infância, lançado em 2010, que representou um marco histórico na defesa dos direitos da primeira infância no país e foi construído por várias pessoas e organizações. O Instituto Alana, que tem como missão “Honrar a criança”, já se fazia presente naquela época entre as diversas organizações que contribuíram para a elaboração da primeira versão do Plano.
É justamente por trabalharmos, no Instituto Alana, em prol da garantia dos direitos da criança e do adolescente que compreendemos a máxima importância do Plano Nacional pela Primeira Infância e da sua atualização recém lançada.
O Brasil possui hoje mais de 60 milhões de crianças e adolescentes, sendo que 19 milhões são crianças de 0 a 6 anos de idade. Sujeitos de direito, são eles o presente e a maior riqueza desse país. Não por acaso, a nossa Constituição Federal prevê que seus direitos fundamentais sejam garantidos com prioridade absoluta, ou seja, em primeiro lugar. Também prevê a responsabilidade compartilhada de todos nós, sociedade, famílias e Estado, de assegurarmos tais direitos.
Ao longo das últimas décadas tivemos inúmeros avanços em direção à efetivação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes no país. Alguns exemplos mostram bem isso:
- Entre 1990 e 2012, a taxa de mortalidade infantil caiu 68%, conforme dados do Min. Saúde;
- De 1990 a 2013, o percentual de crianças com idade escolar obrigatória fora da escola caiu 64%, conforme dados do Pnad;
- Entre 1992 e 2013, o número de crianças e adolescentes de 5 a 15 anos trabalhando no país caiu 76%, conforme dados do Pnad.
Contudo, nos últimos anos, verificamos uma tendência de piora em alguns indicadores. Infelizmente, em 2016, pela primeira vez em mais de uma década, a taxa de mortalidade na infância, de crianças de até 5 anos, aumentou. Também o avanço da insegurança alimentar grave, a fome, no país, que atingia 3,6% da população brasileira em 2013, passou para 5% em 2018, alcançando mais de 10 milhões de pessoas, conforme dados do IBGE.
É fato que a imensa desigualdade social existente no Brasil impacta diretamente as crianças. Em 2017, tínhamos 50 milhões de pessoas, o equivalente a 25% da população brasileira, vivendo abaixo da linha da pobreza e 26 milhões vivendo na extrema pobreza. Como menciona o capítulo introdutório do Plano, a outra face da desigualdade é racial: segundo o IBGE, em 2016, entre os 10% da população com menores rendimentos, 78% eram negros.
No país, a probabilidade de crianças filhas de mães negras morrerem no início da vida é cerca de 37% maior do que entre filhas de mães brancas, chegando a ser 138% mais alta entre as indígenas, em comparação com as crianças brancas.
Hoje, na região norte do país, 22% dos estabelecimentos de educação básica declararam inexistente o acesso ao esgoto sanitário. 64% dos estabelecimentos de educação básica do país não possuem quadras esportivas. Temos 68% dos municípios brasileiros sem a presença de aparelhos culturais como centros culturais ou bibliotecas públicas.
No ano de 2018, 9.850 homicídios foram cometidos contra crianças e adolescentes, de 0 a 19 anos, no país. Em 2018, tivemos ainda mais de 15% de crianças nascidas vivas filhas de meninas de até 19 anos, segundo o Ministério da Saúde.
Muitos desses dados demonstram a urgência da necessidade de ação por parte de todos nós para que o presente de todas as crianças e adolescentes no país seja permeado de justiça e beleza, desde o começo da vida. A beleza que está mencionada no Plano e que perpassa todos os direitos fundamentais explicitados no documento.
Por isso, mais do que nunca, faz-se necessário iluminar a imprescindibilidade de se garantir os direitos das crianças e dos adolescentes no país, com prioridade absoluta e, em especial, garantir-se um bom começo da vida, com condições adequadas desde a primeira infância. Especialmente, nesse momento tão desafiador que estamos vivenciando, com os reflexos da pandemia do COVID-19.
De fato, os desafios são imensos, mas a caminhada é contínua e mostra que avanços relevantes são possíveis. O Marco Legal da Primeira Infância e o Pacto Nacional pela Primeira Infância são exemplos de recentes conquistas da primeira infância no país. As políticas públicas voltadas para a promoção e proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes têm fortalecido a doutrina da proteção integral. Nesse sentido, todos os 13 pontos de avanços recentes destacados no Plano são muitíssimo importantes.
Não podemos parar. Devemos seguir em frente e ampliar as conquistas para todas as múltiplas infâncias do país, de forma que cada criança seja sujeito de direitos com valor em si mesma.
Nesse sentido, muito bem inova a versão atualizada do Plano Nacional pela Primeira Infância ao fazer um diálogo direto com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os ODS, partindo do entendimento de que um mundo sustentável começa com uma primeira infância saudável e segura para todas as crianças. Também porque o Brasil tem até 2030 para alcançar os 17 objetivos com os quais se comprometeu — inclusive com a garantia dos direitos de crianças e adolescentes.
Da mesma forma, ressalto aqui a relevante diretriz que menciona, para a educação na primeira infância, que os direitos de aprendizagem e o desenvolvimento infantil concretizam-se por meio das interações e do brincar. Brincar, que é também um direito e foi amplamente detalhado no Plano. Ainda sobre a educação infantil, chamo atenção para a importante diretriz de número 13, que menciona o direito das crianças com deficiência à inclusão no ensino regular – direito, este, aliás, protegido pela nossa Constituição Federal.
Igualmente chamo a atenção para o item ´A criança e o Espaço´, que trata da relação da cidade e do meio ambiente com a criança. Cada vez esse tema torna-se mais relevante para a fruição dos direitos de todos nós e também na primeira infância. Esse período de pandemia, em que muitas crianças não puderam ter contato com áreas externas e com a natureza, mostrou como espaços ao ar livre e a natureza são indispensáveis para promover saúde, felicidade e potência nas crianças – assim como bem menciona o Plano.
Da mesma forma, vale mencionar o capítulo sobre a necessidade de protegermos as crianças da pressão consumista, que traz, dentre outras metas, a necessidade de se garantir o respeito à lei que proíbe o direcionamento de publicidade a crianças. Também o item sobre o ambiente digital é bastante atual e apresenta o direito fundamental das famílias, mães, pais e responsáveis, ao acesso à Internet.
Por fim, não poderia deixar de citar a relevante menção da responsabilidade das empresas e das metas para elas em torno da agenda da primeira infância, bem como a inovação trazida nessa nova versão do Plano, com a inclusão do Sistema de Justiça, mostrando a sua importância no tema.
Que esse Plano de Estado e não de governo, coerente com o sistema federativo, muitíssimo bem embasado nas dimensões ética, estética, política, científica e técnica, alcance seus objetivos, no sentido de garantirmos, todos nós – famílias, sociedade e Estado – a efetiva fruição dos direitos pelas crianças no país, durante a fase da primeira infância, para que todas possam ter o começo da vida com justiça, verdade, bondade e beleza.
*Isabella Henriques é diretora executiva do Instituto Alana