A não consideração das desigualdades e violências provocadas pelo racismo na aplicação da Constituição Federal, do ECA e do Sinase os tornam insuficientes para a superação do racismo no sistema socioeducativo
Por Letícia Carvalho Silva e Mayara Silva de Souza*
Adolescentes negros e negras se declaram a maioria no cumprimento das medidas socioeducativas de semiliberdade e internação. De acordo com Levantamento Anual do Sinase de 2017 – último levantamento publicado pelo governo federal – a população parda e negra representava 56% do total de atendimentos das medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade, contra 22% de brancos e 16% que sequer apresentavam informação de cor. Em 2016, a população negra correspondia a 59%, e no ano de 2014 atingiu 61% dos atendimentos.
Em relação ao atendimento em meio aberto, que consiste na reparação do dano, prestação de serviços à comunidade (PSC) e liberdade assistida (LA), não existem dados oficiais que comprovem que a maioria dos atendimentos é de adolescentes negras e negros. Neste sentido, o Relatório da Pesquisa Nacional das Medidas Socioeducativas em Meio Aberto destaca que, embora o item raça não tenha sido utilizado na pesquisa, “baseando-se no público encontrado no meio fechado, pode-se ter pistas que possibilitem uma leitura racial do cenário da LA e da PSC no Brasil”.
Contudo, as pistas identificadas apontam que a raça, nesses processos, é vista como elemento meramente formal, o que promove a invisibilidade do racismo e de outras discriminações¹. Enquanto houver racismo e seu constante silenciamento, a população negra, desde o começo da vida, sofrerá com barreiras que operam de maneiras distintas para brancos e negros e continuará ao longo de toda sua trajetória sendo tratada socialmente sob a ótica da violência, da maginalização e da inferioridade que dificulta o acesso aos direitos fundamentais, às oportunidades e ao pleno desenvolvimento.
Neste sentido, é preciso saber que o racismo apresenta três concepções distintas²: a primeira é individual, em que indivíduos – e não sociedades ou instituições – são racistas e agem isoladamente ou em grupo; a segunda é institucional, em que o poder nas instituições é o elemento central das relações raciais havendo uma predominância de regras e padrões que direta ou indiretamente dificultam a ascensão da população negra, bem como inexistindo espaços onde se discuta a desigualdade racial, naturalizando o domínio do grupo formado pelas pessoas brancas.
A terceira, e última, concepção é o racismo estrutural que aponta o racismo como parte da ordem social não sendo, portanto, criado por instituições, mas sim por elas reproduzido. Assim, as instituições são racistas porque a sociedade é racista e, se o racismo é inerente à ordem social, a única forma de combatê-lo é por meio de implementação de práticas antirracistas efetivas, sobretudo nos processos de aplicação e execução de medidas socioeducativas.
Desta forma, sabendo que a barreira racial gera desvantagens para a população negra e privilégios para a população branca, é necessário que o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), especialmente os sistemas de justiça juvenil e socioeducativo, reflita se a aplicação do artigo 227 da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescentes (ECA) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) sem considerar a raça como um fator de desigualdades, desde a aplicação de uma medida socioeducativa, passando pela execução, e no pós medida, consegue superar as violências impostas pelo racismo.
É inegável que o racismo é, perversamente, o grande promotor de violações e motivo para as ausências de direitos, mas não o único, trata-se, portanto, de uma barreira específica que atinge crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos negras e negras. Assim, em um primeiro momento a inferência que adolescentes negras e negros são a maioria no atendimento em meio aberto somente pelo fato de serem a maioria no meio fechado, sem a existência de dados, pode ser considerada uma inferência racista.
Por sua vez, é possível inferir que a população negra é a maioria no sistema socioeducativo em decorrência da existência do racismo estrutural que se alia como a seletividade do sistema de justiça – destaca-se a criação do Grupo de Trabalho Políticas Judiciárias sobre a Igualdade Racial no âmbito do Poder Judiciário pelo Conselho Nacional de Justiça que recentemente lançou o Relatório Igualdade Racial diante a necessidade de se institucionalizar a discussão sobre o racismo no Poder Judiciário brasileiro -, a criminalização da pobreza e o silenciamento das vozes destes adolescentes.
Por tanto, a não consideração das desigualdades e violências provocadas pelo racismo na aplicação do artigo 227 da Constituição Federal, do ECA e do Sinase os tornam insuficientes para a superação do racismo no sistema socioeducativo, que ainda enfrenta a barreira da ausência de dados sobre cor e raça de adolescentes em atendimento. Assim, como disse a professora e filósofa Ângela Davis “em uma sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”.
[1] MOREIRA, Adilson José. Pensando como um jurista negro: ensaio de hermenêutica jurídica. Revista de Direito Brasileira, São Paulo, SP, v. 18, n. 7, p. 393 – 421, Set./Dez. 2017.
[2] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. Feminismos Plurais, São Paulo. Ed.Jandaíra, 2020.
*Letícia Carvalho Silva é estudante de Direito e estagiária no projeto Justiça Juvenil do programa Prioridade Absoluta.
Mayara Silva de Souza é advogada e responsável pelo projeto Justiça Juvenil do programa Prioridade Absoluta.